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CARLOS SALDANHA LEGENDRE
Nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, a 14 de outubro de 1934, Cursou direito na UFRGS. Realizou, também, o Curso de Formação Pedagógica. Exerceu a advocacia criminal até ingressar na magistratura rio-grandense. Obra: Canto ao Mar de Piriápolis (1962), Inventário do Canto (1971), Artepoema (1998) e Elegia à Lesma (2011).s
Extraído de
COLETÂNEA DE POESIA GAÚCHA CONTEMPORÂNEA.
Organizador Dilan Camargo. Porto Alegre: Assembleia
Legislativa, 2013. 354 p. ISBN 978-85-66054-002
Ex. bibl. Antonio Miranda
ELEGIA À LESMA
VI – Os Passos, Da Autópsia
1.
Retirá-la
do quintal
com cautela
de legista.
Acostá-la
sobre o sal
desta mesa
de alumínio.
Com destreza
e fascínio
ir abrindo
vãs janelas
no seu corpo
em declínio.
2.
Em sua morte
Como em vida
nenhum osso
resistindo
À investida
destes cortes
nem amarras
que detenham
o imergir
n´água em sono
de seu casco
devorado
pelas vascas
do abandono
3.
Muito rápido
ir secando
os condutos
de geleia
as usinas
de seu sangue
tributário
da neblina
que se evola
pela tarde
e de prata
se aparata
sob o fumo
das exéquias.
4.
De que carnes
siderais,
de que abismo
se destila
este fel
de sofismas
minerais
com que nós
decompomos
os seus membros
neste chão
calcinado
em dezembro
e razão?
5.
Ao final
ver fundeado
no alto-mar
de seu ventre
o arquipélago
de suas vísceras
onde o tempo
cobra os ágios
tão ingentes,
em naufrágios
sem clemência
este drama
sem ensaio,
existência.
REVISTA DA ACADEMIA BRASILIENSE DE LETRAS. Direção: Antonio Carlos Osorio. Brasília. No. 6 –setembro 1987. Ex. bibl. Antonio Miranda
MAREAÇÃO DO ADEUS
Quilha de sal, adeus na bruma
nos une além, fora do medo.
Não há farol, quando há degredo.
— Quem tanto chora em chão de espuma?
Mastro plantado em cada cedo
de aragem pura, rosto numa
orla de grito, água nenhuma
lá, onde o abismo fez-se quedo.
Velas que levais a longo acre,
dobrai-vos: céleres escorrem -
as esperanças já sem lacre.
A viração no entanto acorre
a esta aurora de massacre,
ungindo o porto onde se morre.
SONETOS PORTUGUESES
— Uvas? Eu as comia, quando menino.
Depois cresci, botei-me luvas às
Mãos, luvas de homem, álgidas e más!
Botei-as até o punho, até que o tino
Do que eram despertares, vozes, sinos
De Portugal cristão, perdi-o. — Quem há
Que as uvas, em chover alegre, m'as
Derrame às pencas, n'alma de menino?
— Ó uvas do Tejo, que o não vejo mais
Desta orla, onde este mar me adoça em sais.
— Uvas de Ti, das chagas Tuas, abertas
Ao presto cair da noite, vãs de grito...
Eu as tomo prostrado, só, contrito,
Mas rolam-me das mãos, de tato incertas.
Modelei-me em afagos de sol posto
E tudo em mim é sombra das ameias...
Teci, paciente, a minha própria teia
Co'as rosas que esqueceste em céu de agosto.
Dei-me a brumas: nos ermos tive encosto!
Tomaram-me por Lord em praça alheia,
Talvez Escócia lindamente feia
Com sua hulha a maquilar-me o rosto...
— Que fugazes estrelas fui Além!
Se sonhei enleios d'oiro, já ninguém
M'os recorda em crepúsculos de lis...
Deixei de ser-me para ser o Mito...
A ver se encontro a mim, eu me repito
Naquilo que farei, não no que fiz.
MORTE NA ESTRADA
À memória do poeta
Vicente Moliterno
Um automóvel corre na neblina.
Eu vou sentado, cego, a seu volante
traiçoeiro. O gado e a magra hora minguante
estrumam solidão pelas esquinas
do campo. Calcinaram-me as retinas
com sono mais antigo que este instante.
Gemem as vértebras ao fel do guante
que envolto a noite move nas ravinas.
Diviso o corpo lívido das lebres
perdendo-se em pomares desmaiados.
As pálpebras me caem em véus de febre.
De pronto, sangro em seco bater de aços:
— a ponte às vezes leva a outro lado.
Eu me conduzo morto sobre os braços.
NATUREZA MORTA
Renda de bilro, louça, pó.
O doméstico em pernas tesas,
nada anula o organismo só,
útil e vário, utilitário
— mesa.
Na parede o relógio marca
tempo breve de utensílios.
Sob a mesa navega a arca,
mais o cão (o cão se coça,
remoça em úmidos brilhos).
A mesa impassível resiste
o laranja absorto da fruta
ou aquele que ontem viste
encimando-a de costas
— morto.
Página publicada em maio de 201; ampliada em junho de 2019
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