CAIO FERNANDO ABREU
(1948-1996)
Caio viveu meia década na segunda década do século XX como observador atento e criador compulsivo. Jornalista, viveu em seu Rio Grande do Sul, no Sudeste, na Europa, de forma intensa embora também de recolhimentos e introspecções. Acabou vítima do mal do século – o HIV – e terminou os seus dias em Porto Alegre cuidando de flores, em família.
Deixou uma obra extensa, sobretudo como contista, de muitos leitores e vasto reconhecimento. Mas também era poeta. Constante, mas sem levar a público seu trabalho, salvo em raras oportunidades. Caleidoscópico, fluía da ação jornalística para os relatos e, paralelamente, de forma contínua, também em poemas que ia revendo, reformando e guardando em uma carpeta. Letícia da Costa Chaplin e Márcia Ivana de Lima e Silva dedicaram-se ao trabalho de compilar a obra poética de Caio, em forma cronológica (décadas de 60 a 90), com o cuidado de definirem as versões dos poemas a partir das próprias revisões do autor, tarefa complexa que as obrigou, não raras vezes, a deixar algumas peças com algumas inconclusões. Cento e dezesseis poemas confessionais, impressionistas, eivados de reflexões discursivas e metafísicas, que as autoras resumem como “essencialmente viscerais” exalando sentimentos: dor, paixão, solidão, medo...
Em boa hora a editora RECORD nos brindou com este registro que faltava para o conhecimento da obra de Caio Fernando Abreu. Sabendo das restrições relativas aos direitos autorais, limitamo-nos a reproduzir dois poemas breves, recomendando a leitura do volume completo para que conheçam a intimidade e o lirismo de nosso grande escritor.
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ABREU, Caio Fernando. Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu. Organização Letícia da Costa Chaplin, Márcia Ivana de Lima e Silva. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012. 206 p. ISBN 978-85-01-09814-6 Col. A.M.
FEVER 77°
Deixa-me entrelaçar margaridas
nos cabelos de teu peito.
Deixa-me singrar teus mares
mais remotos
com minha língua em brasa.
Quero um amor de suor e carne
agora:
enquanto tenho sangue.
Mas deixa-me sangrar teus lábios
com a adaga de meus dentes.
Deixa-me dilacerar teu flanco
mais esquivo
na lâmina de minhas unhas.
Quero um amor de faca e grito
agora:
enquanto tenho febre.
14 de janeiro de 1975
PRESS TO OPEN
Estavam ali as portas
janelas e varandas.
Estavam ali
na fronteira do olhar
onde o de dentro encontra
justamente
com o de fora.
Nesse ponto exato
elas estavam.
Bastava um gesto.
Mas o meu estar parado
era maior do que eu.
Estar parado/estar vivo:
a mesma incompreensão
e medo
entre mim e aquele estar das coisas.
Estar ali
como nunca ter chegado.
Estar ali
como ter visto absolutamente tudo.
Estar ali
por estar ali.
E além de mim
o que eu não ousava.
Ah:
relembro a amplidão dessas varandas
os pequenos raios de luz
nos vidros coloridos das janelas.
Revejo a dura consistência da porta
cerrando seu segredo. E me retomo
ali
no imóvel do gesto que não fiz.
Como se pudesse
agora
escancarar portas e janelas
para sair nu pelas varandas
desvairado e nu
— um profeta, um louco, um santo.
Sair para o vento, o sol, as tempestades,
as neves, as quedas de estrelas e Bastilhas,
o cheiro de jasmins entontecendo os quintais.
(Pudesse retomar manhãs, amigo,
manhãs perdidas como o que não fui.)
Mas continuo
ali.
Aqueles espaços
permanecem tão mortos de mim
como um corpo que se ama
e não se toca.
Londres, 4 de fevereiro de 1974
Página publicada em dezembro de 2012
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