APPARICIO SILVA RILLO
Apparicio Silva Rilo se destaca dentro de nossa melhor poesia gauchesca. Original, inventivo, suas imagens se arredondam nas coxilhas e o ritmo é um tropel de vigorosos cavalos.
Sabe cantar bem a sua aldeia, como ensinava Tolstoi. Atira-se ao sopro do Minuano mas não se perde no mágico, tem visão do mundo, sua perspectiva é real, muitas vezes, crítica.
Anda o seu verso com a roda rija de nosso pobre, triste, mas, iluminado tempo. Carlos Nejar
RILLO, Apparicio Silva. Doze mil rapaduras & outros poemas. Porto Alegre: Tchê!, 1984. 88 p. ilus. p&b 14x20 cm. Editor: Mário Goulart. Capa: Roberto Silva. Ilustrações: Jaca. Col. A.M.
“Estamos diante de um poeta que domina seu ofício: sai do verso tradicional e chega ao contemporâneo, vai do regional ao universal, com qualidade.” Antonio Miranda
INDUSTRIA
Ferve a garapa nos tachos,
ciranda a pá na fervura.
Dorme o fogo. A calda parda
se açucara em rapadura.
Na remansosa tarefa
de uma dezena de dias
as formas dão-lhe unidade
de regular geometria.
Berço arrancado de espigas
do milho em mó e paiol,
capuchos de palha clara
lembram bandeiras ao sol.
Mãos ágeis vestem de palha,
uma por uma, às centenas,
a nudez açucarada
das rapaduras morenas.
SÍNTESE
De tudo me ficou nada:
— minha síntese de vida.
Restou-me a linha perdida
do que foi a minha estrada.
Nela os timbres de meu passo
e um vento para varrê-los.
O pó no fio dos cabelos
enlunarados e escassos.
Na pele o beijo mordido
na faca em alva dos dentes
- o ontem que de repente
me grita o corpo perdido.
Meu tempo no calendário
roto de rasgos e ratos
e um cansaço de sapatos
nas vergas do itinerário.
O adeus na carne da palma
(bandeira à brisa dos ares)
e o sal de pedra dos mares
flechando abismos de alma.
De tudo me ficou nada:
um nome,
o pó de uma estrada.
INVENTÁRIO
Inventario os muitos do meu pouco
para as partilhas do nada que couber
àqueles que dei vida em seio e ventre
no sémen feito flor numa mulher.
Há um Augusto dos Anjos na partilha
— a seu modo de esquivo e solitário —
e um anjo augusto a me ensinar a lavra
do texto cartorial deste inventário.
Uma frase lhes deixo em algum verso,
um resto de canção ferida ao vento.
Uma côdea de pão que matou fomes
e os sóis do trigo que lhe há por dentro.
Uma caneca com águas de cacimba
onde estrelas bailaram certa vez,
ínfima fonte que parou no tempo
quando a sede da vida se desfez.
Pela metade, um cálice de vinho
na mesa onde sentamos e sentei.
Parrais ressecos de arroxeadas uvas
nas terras de aridez que sementei.
Um chapéu desabado, uma gravata,
uma camisa sem botões vos deixo
e um brasão armoriai que tem por armas
um fio de barba que saquei do queixo.
Sapatos tortos de cansaço e ruas
ao pé da cama, postos lado a lado
— dois velhos barcos de arriadas velas,
viajeiros de mim, desancorados.
Bolsos vazios do último casaco
que me vestiu o emagrecido ser.
Fantásticos surrões que hão de servir-vos
para o que quis e que não pude ser.
O espelho que era os olhos de meus olhos,
minha carne em luz e vidro refletida,
moldura de meus íntimos retratos
na cara sempre roais envelhecida.
E uma. régua com traços de horizonte
de azulecido além que a vista alcança,
onde medi, centímetro a centímetro,
meus legados de duras esperanças.
Uma caneta, um texto pelo meio
e a clara folha onde ficou o verso,
microcosmo de letras maltraçadas
que medi em distâncias de universo.
A pasta preta onde juntei faturas
dos trastes materiais que adquiri,
roídos pela vida que encanece
enquanto o tempo que comanda, ri.
Um riso amargo na fotografia
em preto e branco - aquela das antigas.
E que abaixo do riso me pisavam
os ácidos espinhos das urtigas.
Um vaso roto num desvão de muro
e no seu bojo a esfera de um cactus,
lanceando sombras com seu finos cravos
cinzentos como o inverno e como os ratos.
De avós, patino e pardo, um pergaminho,
indecifrado mapa de tesouros,
rota cavada a unha, sem que nunca
as mãos das unhas lhe encontrassem o ouro.
E a pedra onde afiei pontas de lança,
aços de adaga e cortes de navalha,
e cicatrizes que me riscam a pele
- pano da carne onde timbrei batalhas.
E uma casa vos deixo, de tijolos
argamassados de vivência e dores,
com fantasmas de mim morando nela,
sonambulando pelos corredores.
E um sobrenome vos fica, se o quiserdes,
para o rabisco das assinaturas:
o traço que gastei vendendo ventos
em contratos de amargas aventuras.
Castelos construídos, prata e ouros,
sesmarias e bois aqui não ponho.
Não se mente no texto de uma herança
riquezas ganhas pelas mãos do sonho.
E minha voz - num gravador de ecos —
a dizer-vos num timbre doce e rouco
que se é pouco o que vos deixo
o pouco é muito,
porque há tudo de mim neste tão pouco.
Página publicada em setembro de 2012
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