SERGIO LUIZ MOREIRA
Carioca, engenheiro elétrico. Publicou os seguintes livros de poesia: Escape (1984); A árvore amorosa (1996); Trilhas urbanas (1998); Quintal do tempo (2009); Safra e entressafra (2010) – prêmio Jorge de Lima da UBE.
MOREIRA, Sergio Luis. Escape (poesias). Capa e ilustrações de Jane Jaolino. Rio de Janeiro: Editôra Lidador, 1984. 11 p. formato 15,5x20 cm. Apresentação de Walmir Ayala. “Sergio Luis Moreira” Ex. bibl. Antonio Miranda
Dois posicionamentos tornam-se claros na construção do livro de poemas de Sérgio Luiz Moreira. De um lado o discurso intencionalmente prosaico, ou desenraizando do prosaísmo uma poesia direta e afirmativa; de outro o lirismo transparente do soneto tradicional, aderindo ao encantamento melódico, ao encadeamento do desenho verbal na medida exigente do decassílabo. Sai-se bem ambos caminhos com lúcida atuação mental, em relação ao que quer nos comunicar de suas reflexões sobre o tempo que passa. Trata-se de uma poesia apoiada no testemunho da primeira pessoa, o poeta colocando-se livre e despojado diante do leitor, e procurando levar o leitor a identificar-se com a essência do conhecer-se. Neste sentido não poucas vezes a poesia de Sérgio Luiz Moreira assume uma impostação quase didática, trivializando-se no dizer mais simples, sem se perder das definições finais, contaminadas de tragédia e desencanto. Neste sentido o poema Depoimento a meio curso é um exemplo perfeito. Sinto neste poema, de forma diferente e coerente com tudo o que acontece na poesia de hoje, uma familiaridade com a poética de Augusto
dos Anjos.
WALMIR AYALA
DEPOIMENTO A MEIO CURSO
Eu sou uma cabeça,
no cume de um corpo
em processo não lento
de degeneração pelo tempo
e desarticulação pelo uso.
O corpo, não obstante,
vai mantendo a serventia
de sustentar a cabeça
sobre a linha do poente,
exceto quando me deito
e posso me confundir
com uma lesma ou um caramujo
insignificante sob o céu.
Mas, eu não sou um corpo.
Horizontal ou verticalmente
o corpo não sobressai
e o que realça é a cabeça.
A cabeça em si, não os cabelos
embranquecendo só por embranquecer,
pois não houve, jamais,
qualquer ganho imprevisto
ou perda considerável
a acelerar a mutação.
A cabeça, não os olhos
a esverdearem em tons
que não do mar de janeiro,
mas do zinabre que já recobre
as coisas vistas e conservadas
como recordações de valor.
A cabeça, não a boca
mais mantida fechada que usada
com instrumento de veicular ideias,
liberá-las no espaço, perdê-las no vento,
à falta de receptores interessados
em bem captá-las ou entendê-las.
A cabeça, não os ouvidos
que só ouvem o que apraz ouvir,
porém conservam, ecos perpétuos,
os sons que se definem na alma,
como melodia de amor
impondo-me o ritmo de vida.
Não; o corpo nada significa.
Meu modo de andar, meus olhos,
quem irá recordá-los
duas gerações após?
Sou uma cabeça que pensa
e a mão que a rascunha
para alguns leitores.
Não importa, contudo,
que poucos leiam hoje, amanhã
ou daqui a cem anos
numa folha amarelada
de tintas quase delidas.
Pó serei, na terra escura,
entre lesmas, caramujos,
mas no papel, em essência,
cabeça permanecerei.
ARTIFÍCIOS DE JUNHO
Junho apõe cunho de festa
neste adulto coração
há muito infenso a festejos.
Junho impõe brilhos pretéritos
a estes dois olhos sérios.
Junho chega crepitando
como fúlgida fogueira.
Junho já vem ensaiando
passos certos de quadrinha
sob arcos de bambu verde
e bandeirinhas em tranças.
Junho já chega especando
um lacrimoso rojão.
Nem bem chega, junho sobe
como bojudo balão.
Devagar, subo com ele;
estou leve, estou criança
sobrevoando outros junhos
de reacesas lembranças.
CONFRARIA
Procura a mão, o objeto, num momento,
ao encontrá-lo vai torná-lo mágico,
ao segurá-lo, vivo, leve ou trágico
vau, canalizador do pensamento.
Em perfeita harmonia, mão e pena,
a poesia se escreve a tinta e sangue.
E será rubra a rosa mais exangue,
mais doloroso o amor fora de cena,
e mais azul o azul real do céu,
a morte, vinte vezes mais cruel,
a fantasia, do exato, negação.
Deslizando no branco do papel,
pulsando como pulsa um coração,
é a caneta ele próprio, em minha mão.
POESIA SEMPRE - Número 33 – Ano 17 / 2010. Hungria e Índice Geral. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010. 320 p; 17,5 x 25,5 cm. Editor: Marco Lucchesi. ISSN 9770104062006 Ex. bibl. Antonio Miranda.
O poeta é aqui incluído como SERGIO MOREIRA:
COBRE
Do outono cobre
o chão de falhas cobre.
Cobre
o claro despojamento
que a paisagem descobre.
Cobre
o langor da luz
que a penumbra recobre.
E cobre
o mais que outono encobre:
a sublimação da alma nobre
a saturação da carne pobre.
MÁRMORE
É sempre o mar à vista na revista
do solhos matinais. O instante vaga
sobre as cristas das vagas e se apaga
no flagrante da efêmera conquista.
O belo é breve e eterno mar à vista
ou à primeira vista, se o consagra
a vaga plenitude e o extingue a vaga
quando outra vaga segue em sua pista.
É sempre desde sempre esta aderência
das águas colossais em seu conflito
ou calma, seu alcance ou infinito,
Mas sempre transição e permanência
como pele na pele da retina
de uma profundidade repentina.
ALTA COSTURA
Tu me pedes novidades
palavras certas que lancem
mais lenha à nossa fogueira
viva de velhas verdades.
Tu me cobras variedades
espelho, pedras de brilho
que reflitam nossos sóis
comuns e cumplicidades.
Tu me impões sonoridades
sussurros, sopros de flautas
dissonâncias de guitarras
delírios e suavidades.
Tu me exiges qualidades
e textos bem decorados
do namorado, do amante
repentes e eternidades.
Tu me propões realidades
pés em chão de terra firme
mas nosso chão é de nuvens
nosso mar, de tempestades.
Tu pedes felicidades
e nenhum verso resiste
a costurar este amor
com invisíveis metades.
Página publicada em outubro de 2014; página a ampliada em julho de 2019
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