Foto extraída de: http://www.proparnaiba.com
LÉA MADUREIRA LIMA
Texto e poemas extraídos de
POESIA VIVA em revista. v. 6 / Leda Miranda Hühne et al. Rio de Janeiro: Uapê, 2010.
166 p.
AS CERCANIAS DO OUTONO
Sementes pulam das gavetas
buscando a promessa do chão.
Agulha e linha costurando
a indiferença de retalhos.
Da ríspida palavra, o corte.
No emboço da parede, a angústia
resistia à demolição.
Do adulto a permanente infância,
memória visitando a dor.
Perdidas vozes, brincadeiras.
Não conheço o tranquilo voo
do azul em lassidão de outono.
Nua é, das asas, a incerteza
da liberdade. E a solidão
em metamorfose do sono.
O riso refletido em taças
de cristal, os dedos feridos.
Da louça inglesa vão-se os cacos.
E o estardalhaço de talheres
zomba da casa em cinza e prata.
.
CAÇADA SEM FIM
Hora do chá, presença da avó à mesa.
Jarro de flores, copos, fruteira, a louça.
No repente, o cavalo e o caçador,
da fina porcelana pulam
pro quadro da parede.
Antes, a madrinha declinava os nomes,
e os toques, bem marcados pela pauta,
corriam nos detalhes da toalha.
Esmero no bordado das irmãs,
em ponto de cruz.
Inda as ouço, as lições ao piano interrompidas.
sempre que apuro a marcha na corrida
em busca da cavalgada,
no rastro do cavaleiro.
Pela caçada sem fim.
AS CERCANIAS DO OUTONO
por Astrid Cabral
Em As cercanias do outono, a poeta Léa Madureira Lima celebra a maturidade existencial. O conjunto de poemas é o fruto do momento sazonal em que ela já pode contemplar o passado nostalgi-camente, bem como já dispõe do distanciamento imprescindível às reflexões de sabedoria.
Quatro são as partes da obra: Morada, Cercanias, Pulsação e Rumores, em amorosa afinação com as belas epígrafes de Lélia Coelho Frota, extraídas de Menino deitado em Alfa e Brio.
Nos dois primeiros segmentos, a autora procede à exumação não só de sua infância, mas também de um Brasil pretérito que a urbanização acelerada das últimas décadas soterrou. De modo metonímico, fragmentos de realidade vão construindo o resgate de um mundo perdido em que havia quintais, folguedos, balões de São João, malhação de Judas, realejos, bondes etc. Aí se encontram as zonas oeste e sul do Rio de Janeiro, envolvidas ainda de um bucolismo que contrasta com a atualidade violenta do tiroteio no morro do Turano, à que aludirá depois na parte final.
Não apenas sobre a saudade do já vivido se debruça a autora, pois também expressa a melancolia do não vivido, aquilo que Bandeira definiu como o que poderia ter sido e não foi.
Já os poemas de Pulsação se definem por caráter mais abstrato em função do afastamento das contingências. Estamos diante de um eu-lírico que se interroga, analisa e expressa a interioridade dos sentimentos, em vez de observar e descrever o exterior. Rumores encerrará a coletânea com o ressaibo do sofrimento advindo pelo trágico da vida, a amarga decepção com os desmandos da sociedade brasileira, e onde, em pungente poema, lembra que urge gritar: Basta! Assim, se em O anjo do Pastoril, imagem luminosa da infância, o encantamento faria suas asas voarem, elas agora ressurgem em Anjos caídos, no lixo sobre o as¬falto, o estampido sobrepondo-se à canção. Porões trancados não são mais o espaço de esconderijos e brincadeiras uma vez que se transformaram em sombrios subterrâneos. Ficam ressoando no leitor sentenças como página nublada, céu incinerado e o verso síntese: O cálice vazio de esperança.
Léa Madureira Lima possui alto grau de consciência criadora. A organização equilibrada do material poético, a insistência no uso de métrica e de estrofes, assim como os três bem elabora¬dos sonetos apontam os fortes vínculos que mantém com a tradição. Por outro lado, seu discurso democrático incorpora tanto termos populares como os de léxico erudito. Sua poética expõe eloquência velada e a dinâmica da justaposição de olhares. Algumas vezes a sintaxe surge sincopada porque o frequente hipérbato trava-lhe a fluência, revelando uma sensibilidade crítica, em contrapelo com a realidade precária da vida contemporânea. A poeta se impõe pela aguda conexão mantida com o momento social que lhe cabe viver.
POESIA VIVA UAPÊ – Ano 14 – No. 38. Rio de Janeiro : UAPÊ Espaço Cultural Barra Ltda. Jornal. 4 p.
Ex. bibl. Antonio Miranda
O DESTINO
Não possuo a chave.
Não sei quantos passos.
O sermão renego,
se o caminho é pássaro,
atingido no laço.
Que o destino é um bêbado
conduzindo o cego.
Já dancei o frevo
e deixei o palco:
meio à palmas, o eco.
Me encontrei num trevo
de Brasília ao medo.
Que o destino é um bêbado
conduzindo o cego.
Não sei onde quero.
Não sei quantas voltas.
Me envolvi no afeto
que essa dor acorda
ao fechar a porta.
Que o destino é um bêbado
conduzindo o cego.
Quantas vezes devo
vaguear à noite.
Se me perco é certo
percebo indícios,
pedra limo esguincho.
Que o destino é um bêbado
conduzindo o cego.
*
Página ampliada e republicada em maio de 2023
Página publicada em novembro de 2018
|