FABIANA BORGIA
é paulista, formada em Direito pela PUC de Campinas.
Especialista em Direito Público pela OAB-RJ, e especialista em Bioética
pela PUC-Rio, trabalha na Assessoria Jurídica do Departamento de
Controle do Espaço Aéreo e também é Chefe da Seção de Investigação e Justiça do mesmo Departamento, sendo Primeiro-Tenente da Força Aérea Brasileira.
Por fim, é autora do livro de poemas "Traços de Personalidade".
De tudo fica um pouco, Drummond
Inspirado em Resíduo de C. D. A
De tudo fica um pouco. Do último raio de sol atravessando
a fresta da porta. Do vento que sopra, afastando tudo, mas deixando
um pouco. Da lua dos poetas, sonhadora e misteriosa. Do beijo
instantâneo, que não perde o gosto. Do suor do trabalhador. Dos
pais. Do DNA. Das estrelas com o som dos grilos numa noite vazia,
repleta de encantos. Do som do violão apreciado na fogueira.
De tudo fica um pouco. Das águas que correm e que se
esquecem do tempo, levando um pouco e deixando outro pouco.
Do cheiro da rosa que murcha, que permanece. Do perfume de
mulher. Fica um pouco...
Fica um pouco do sonho que acabou, do braço que abraçou.
Fica um pouco do sorriso amarelo. Fica um pouco da carne mole.
Da boca seca. Do rosto pálido. Do mau hálito. Do bafo de cerveja.
Fica um pouco verão, um pouco inverno. Fica um pouco do casulo
da borboleta. Fica um pouco de lágrima na mesa. Fica um pouco
de desilusão. Fica um pouco nublado. Um pouco sol, um pouco
chuva. Um pouco de suor na testa.
Também fica um pouco de amor guardado, reciclado. Fica um
pouco de bebida na garrafa. Do amargo. Da ressaca. Fica um pouco
de areia nos chinelos. E fica um pouco de cabelo na roupa. Um
pouco do brilho no olhar apaixonado. Fica um pouco de saudade,
um pouco de culpa, um pouco de remorso. Um pouco de mágoa.
Fica um pouco de música na cabeça. Um pouco do retrato
rasgado. Fica um pouco da carta de amor. Do nódulo. Do caco de
vidro estilhaçado. Da porcelana rachada. Do trapo. Da traça. Da
ferrugem. Um pouco de esmalte na unha. Da marca de batom. Um
pouco da dor do parto. Um pouco de carnaval. Da criança correndo na
sala. Um pouco de argila para brincar. Um pouco da cadeira de balanço.
Fica um pouco de lembrança, um pouco de esquecimento,
um pouco de ressentimento. Da sensação ao fechar os olhos. Fica
um pouco do gosto de desgosto ao abri-los. Um pouco da risada
marota. Um pouco de malícia. Um pouco da planta que secou.
Do cheiro da erva. Do cigarro. Do tapa na cara. Do nó na garganta.
Da humilhação. Do mofo da sala. Fica um pouco de vinho na
garrafa. Um pouco da granada. Da guerra. Do fuzil. Do ataque
terrorista. Da data.
Mas, de tudo, sempre fica um pouco. Fica um pouco do
choro e da vela derretida. Mas sempre há este pouco, que tantas
vezes parece muito, por se fazer lembrar.
Coração
O coração do homem tem espaço para tudo
Eu ainda não encontrei o fim do meu
Sempre cabe mais, do passado, do presente, do futuro...
Neste momento sinto a dor
Que estava latente
Bares, carnavais, amigos, amores
Épocas, frases, poemas
Deixei para trás a desconfiança, a dúvida, a falta...
Algumas ilusões, a confiança e, por isso, remorso
E então meu coração sente um aperto
Como se tivesse um nó
Deixei algum tipo de afeto (e desafeto)
E de visitar parentes
Deixei algumas noites em claro
Outras de sono profundo
Mapeando meu íntimo
Deixei um pouco de mim
Em cada pedaço
Em cada lugar... E meu coração transborda
Só sei que a vida passa rápido demais
E meu coração se espreme
Apesar de ter muito
Muito espaço.
Identidade
Eu perdi não só o meu amor
Mas também o que sou
Não sei mais o que quero
Não sei o que devo fazer
Não sei o que vai acontecer
Não sei mais nada
Nem mesmo sei o que sinto
Pior ainda é estar num fim de mundo
Onde tudo o que você tem é você
Mas você não sabe quem é
Está perdida
Sonhos passam
E quando você acorda
Tudo tornou-se amargo demais
Como se a vida risse da sua cara
E lhe esfrega as ilusões como um delírio
Que nunca existiu
Como se você não passasse de uma grande mentira
Eu como, eu durmo, eu acordo
Eu estou sempre acordada
Eu sobrevivo
Tomo meu banho
Visto uma roupa qualquer
Já estou pronta
As pessoas sabem, mas nem desconfiam
Do tamanho do sofrimento
A única coisa que sei
É a tristeza que sinto
A agonia da minha alma
O meu luto que não acaba
A minha falta de estímulo
A sua falta
O meu tédio
O meu ódio
A minha sombra
A solidão
E vontade de morrer todos os dias
Mas, apesar de tudo... eu existo
E isso é suficiente.
Pedaços juntados
Ter paciência e ser paciente...
Mais desencontros do que encontros...
Desilusão é procurar em vão
O Poeta deixa vestígios por onde passa
Impulsione a trava do coração
Para poder ser então
Não deve ser difícil
Apenas a decisão
Basta olhar no espelho
E ver a própria imagem
Refletida de verdade
A impotência destrói o ego
Hora de olhar para dentro
De ser como as aves
Que sempre sabem que rumo tomar
Céu azul de maio e junho
Inigualável
O milagre da vida é suportar situações insuportáveis
Pessoas que gostam de sofrer
Vivem este prazer sem perceber
(Será que gosto de sofrer, porque falei em prazer
E até então eu não percebia?)
Não deixou rastros
Alguém que me fez tanto bem
E tanto mal
O sonhador tem
A alma no céu
E os pés no chão. |