ÁLVARO MIRANDA
Álvaro Guilherme Miranda nasceu em São Paulo, em 1957. Vive no Rio de Janeiro ha 25 anos. Formou-se em jornalismo na Universidade de São Paulo, trabalhou como repórter em jornais cariocas e atualmente atua em consultoria e assessoria de imprensa. Publicou em 2003, com o grupo de poetas Letra Itinerante, o livro Retrato do soneto quando pólen. Email: alvaroguilhermemiranda@gmail.com
Sou poeta de tanto artesanar
minhas vagas na esteira das borrascas.
Sou o visto de passagem em nave e asa
de pássaro que tem certo o sensato
farol de navegar transgressões...lastro
de calcular errante os sonhos, clara
folha que prometeu verso, tombada
pela escrita de todos os tornados.
Na estiva de horizontes sem idade,
faço noites em lida repentina,
errando o prumo na terceira margem...
Concertando perdidos cais sem rima,
vou içando meus tesouros na voragem,
Sou ave e nave, palavra que me singra.
De
A CASA TODA NAVE CEGA VOA
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008
(Coleção Guizos)
ISBN 978 857577444-1
“Uma transpoética do espaço: a casa e o mundo não a circunscrevem, mas a atravessam de ponta a ponta na misteriosa transparência da palavra.” Marco Lucchesi
“Não é mérito menor do livro nos revelar, através de poemas doces ou ásperos, sobre a passagem do tempo ou dos seres amados pela casa, que, apesar de tudo, é possível habitar uma goteira, morar em um desabamento, viver em um incêndio. E esta é a melhor resposta para o desafio de “habitar poeticamente o mundo”. Carlito Azevedo
“Tematicamente, em vez do canto elegíaco de quem perdeu a morada da infância, a própria casa faz soar os seus vazios, convidando-nos a percorrer seus cômodos e incômodos.” Antonio Carlos Secchin
Manuel Mujica Láinez, o ficcionista argentino autor do monumental romance Bomarzo, também é autor de uma obra singular — La Casa, onde é a própria casa que conta a história de seus habitantes, em que os móveis e os quadros dialogam e possuem os seus defuntos. / Quem também vivificou e deu voz à casa foi Pilar de Vicente-Gella, poeta espanhola, em LA CASA ABANDONADA (Madrid: Ediciones Torremozas, 1995), em páginas memorialísticas surpreendentes pelo desapego. Álvaro Miranda usa uma sequência delirante de sonetos para enquadrar memórias e revisões que nem são dele, faz da poesia um espaço de visão e revisão onírica e de perquirição dos desvãos da infância e da passagem do tempo. Antonio Miranda
2
casa
é
nave
cega:
quando
dorme
longe
voa,
leva
sonho
e messe
essa
louca
de pedra
3
Rompesse assim a casa a noite o dia:
nada também mudava em compromisso,
tudo tampouco em vão nas utopias,
a casa era assim mesmo já sem viço.
Rompesse a sina, o tempo que guardasse,
diacronia de sonhos, com passado,
presente e um futuro nesse lastro
que todos vão vivendo em cada casa.
Derrubasse a viga, os muros construídos
e os jardins florescessem na morada
de inventar canto e pássaros migrando.
Assim talvez reunisse o que pudesse:
esticar desde longe horizontes
na esteira do silêncio e aceno eterno.
6
A casa e seus limites tentam versos,
No cal das asas, ela tenta o vôo,
mas seus donos esbarram no horizonte,
a finitude que não se navega.
Fingindo-se fincada no alicerce,
é face e contra-face quando quer.
De cara limpa, solta-se na pedra,
sensata, mansa, tola ou vil megera.
A casa já não tem rezas nem versos,
desmazelada e sonsa é toda frívola
em maquiagem e brilho de festa.
O infinito em fastio faz seu anverso:
não voa não navega, é casa comuna
como toda casa que envelhece.
7
Toda casa envelhece com seus donos.
Paredes, tacos, sótão, venezianas.
Os vizinhos comentam com voz mansa
quando a idade percebem se alongando.
Parece então que as casas nunca morrem.
Vem tempo, passa tempo, vão-se os homens,
os donos mudam e mudam-se os nomes
e assim na margem-tempo a casa sobra.
Mas ela também morre: telhas quebram,
raízes sorrateiras ferem o solo,
portas empenam, janelas não fecham,
e mesmo os alicerces rangem velhos
como joelhos de um tempo que não dobra:
os homens vão primeiro - e não voltam.
Página publicada em junho de 2009
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