ITALO CRISTIANO
Ítalo Cristiano S. Souza nasceu em Teresina-PI em 1979 e reside em Parnaíba. Fez o curso de História, especialização etc... Em julho de 2006 publicou o livro Sanatório Geral. Depois lançou os livretos Uivos do Mar, ékstasis e As quimeras de Pasárgada. Blog do autor: http://italocristianopi.blogspot.com/
a dissolução do sujeito
tempo
efêmero das horas
na busca dos rastros
eu te arrasto ao mar
tempo – deus vida – intransigente
eu te mastigo e vento
nas velas e nos versos
o ancoradouro e as pedras
horizonte dissolvido em tempo
ouro, grãos de sol
do nascente ao pôr
tempo
homem – sombra do vir-a-ser
eu te desenho os membros
dos corpos expostos
harmonias em dissonância
flor da paixão e da morte
eu te guio e me esqueço
animal desprovido de tempo
insólito
procurei em tuas pernas
a matéria da poesia;
do que poderia ser feito o músculo
que pulsa qual um coração
quando meus dentes o arranham
dos pêlos eriçados
qual um cacto do sertão
quando minha língua
os absorve
do que seria feita a pele
se de repente do branco
fosse rubro
ao sabor do que lhe chega ao ouvido
das veias aflorando sangue
tal um vulcão expelindo calor
sob o peso das mãos
é a medida do verso
a matéria das pernas
tal qual um inseto
iluminando a noite
eu, bicho-homem
devassei teu campo de flores
canto a vênus
entre tempestades de fogo
arrebato minha lança ao vento
pêlos bordéis onde encontrei teus cachos
soltos - onde aponta teus seios
à beira, de rio e líquido pútrido
em vida sobre pedras centenárias
és escrava, puta dos versos incrustados
no barro do teu lar
és Vênus em teu castelo de homens
de peixes
e redes apinhadas ao sol
no couro curtido da tua pele
no salitre dos lábios férvidos
não sou mais deste sonho perdido
à memória - sou presente e vivo
encravado em teu umbigo - tenho sede
não de água, posto que animal no cio
mas do teu hálito de coisa bruta
e viva
das tuas ancas
em meu altar de miséria
e poesia
coisa da terra
seca
eu te deserto
e aporto meus versos
em teu ventre
CRISTIANO, Ítalo. ékstasis. Teresina, PI: 2009. s.p. 15X21 cm Col. A.M. (EA)
exílio
não deixarei meus olhos dilacerados morrerem
reduzidos à fumaça dos líquidos e da primavera
o espírito aveludado que parte pêlos ermos
não, recuso a agitação do pulso e dos flagelos
no ofício convulso da minha arte derradeira
saúdo os condenados por amarem,
repulso a brancura das castas
e as fatigadas glórias
o nome feudal
sou doutro tempo
quando o mundo era vivo
num transe de espasmo carnal,
a poesia entoada nos livros
derramava-se à pele como bálsamo
num deleite supremo e vertiginoso
de versos roucos, brandos
CRISTIANO, Ítalo. As Sombras de Orfeu. Teresina, PI: 2009. s.p. 15X21 cm Col. A.M. (EA)
despedida
no mormaço dos dias
a água acesa no pavio da vela
queima incandescente
minha decência
o maço das cigarras
velam o canto surdo
no solo negro pós-fogo
foste rio
saudade antecipada
foste homem
medida concreta
reta, e mesmo assim
foste
presa no bravio do silêncio
no serrilhar da cama vazia
fria, como os dedos
acesos em minhas mãos
CRISTIANO, Ítalo. Uivos do Mar. Teresina, PI: 2009. s.p. 15X21 cm Col. A.M. (EA)
sujeito oculto
uma palavra
retilínea
pousada no ar
uma pedra
fugidia
erguida do mar
eu, antes passado
côncavo fechado
monumento barroco
choro, ausência de tinia
de saber-se nada
reto, ereto
feito feto
abortado do mundo
POESIA SEMPRE - Número 33 – Ano 17 / 2010. Hungria e Índice Geral.
Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010. 320 p; 17,5 x 25,5 cm.
Editor: Marco Lucchesi. ISSN 9770104062006 Ex. bibl. Antonio Miranda.
Eros
III.
o amor é rotação
universo das tardes
é ânsia sem contorno
sentimento que atravessa
- horizonte devorado,
o amor é infantil
objeto do silêncio
ouve-se
pelos ângulos da luz
é voo indolente
floresce onde menos se espera
na seiva do céu
na urdidura do sono
a atmosfera cresce
caudalosa
gerando o fruto
influxo da razão
vapor
inalado - fecunda o riso
os dias bravios
só resta entender
a projeção do mar
nessa carência que é negação
nessa fogueira cotidiana
morremos
abrasados de não-amor
sejamos areia
que se entrega
esse gozo lunar
que é único
raro e eterno
carta de Jeremias aos cativos
foi a ti que o meu salgueiro esgueirava
confundido com os ímpios mercadores do alvor
enegreceram o pensamento emerso e escultor
incrustado em rocha o sangue luminoso beirava
no facho do caule onde ascendia o granizo e a cólera
o abrigo da aranha tecendo o manto que a volvera
mas eis que veio a luxúria manchada na língua da víbora
destilar o veneno do consumo e me fez coisa entre coisas
objeto de pouco valor no mercado um simulacro de cópias
eis que a sensação pereceu de inanição por falta da vinha
do ócio amputado travestido na imagem do vídeo
fez-se vinagre mísero astro vítreo
veio da Pérsia a alforria dos escravos
das montanhas o profeta anuncia a vida viva
impregnada do musgo que desce dos pinhais
da seiva quente que vem das seringueiras
Buda olha do alto e do lado e a terra pulsa vigorosa
lançar às mãos dos cativos a pedra milenar a sabedoria dos cravos
apontados p'ras fendas do coração alquebrado
busca d'alma o escarlate do rosto mais são
a púrpura dos tamarineiros o linho do algodão
o alforje das samambaias balança o bálsamo...
veio a nuvem do alto dos coqueiros beijar-me o espírito
banhar-me as colinas das escarpas com perfumes de mirra do oriente
quebrar as grades do deserto semiótico e midiático
em que encerra os homens... inda o azul... o grito dos palmares
Sexta-feira
caminho sobre o espelho da lua
eu mesmo - um reflexo que basta
e encerra a raiz da vida -
falho e sempre
encontro, aflito, a ideia mundo
sussurrando em meus olhos
olho-o. elemento incorpóreo entre o azul do mar
e o azul do céu, facho de nuvens
entre arrulhos d'espumas
areia que assanha o caminho
farol que fecha o horizonte e arrefece o olhar
espreita a mão a figura que forma
eu - beira de mim
sinto ferir-me da imagem
que sei não mais existir em lugar algum
só na projeção que projeto irreal à minha frente
caminho, reticente, pondo-me a sonhar a noite inteira
evoco dos sentidos as cortesãs da madrugada
os perfumes adocicados nas calçadas
pairo em torpor o meu corpo na rua
talvez do asfalto brotem os escravos e os cílios
quentes - volúpia do animal no cio
fogo eterno que não finda
e fere a rosa
cravo de mel na pele
a mulher lasciva exala
o passado que há em mim soterrado
sobre cem pétalas de chão
vencido em êxtase - num plano arcado e imenso
desenho no papel o universo
oceano de folhas flores derramadas
fruto da paixão que flui em descompasso
sozinho - ladeira abaixo...
Página publicada em março de 2009, aumentada e republicada em agosto de 2013. Ampliada em julho de 2019
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