AUDÁLIO ALVES
(1930-1999)
Jornalista, advogado e poeta, nasceu a 2 de junho de 1930 no município de Pesqueira, interior do Estado de Pernambuco. Concluiu o curso Clássico em Pernambuco no Colégio Diocesano. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Recife (1955), bacharelou-se em línguas Neo-Latinas pela Universidade Católica do mesmo Estado. Professor da Cadeira de
Português, no Instituto de Educação de Pernambuco, advogado militante e Assistente Jurídico do Ministério do Trabalho, ainda assim se desenvolve como poeta. Tendo publicado em 1954 "Caminhos de Silêncio" poemas; publicou em 1958 "Olhar da sede", em 1961 "Alicerces da Solidão".); o Áspero de Uma Canção Sem Terra - Canto Agrário", "Canto Soberano", "Canto Por Enquanto".
Foi diretor de assuntos culturais da Fundação de Arte de Pernambuco (Fundarpe), assessor jurídico do Ministério do Trabalho e diretor do suplemento literário do Jornal do Commercio, Recife. Morreu no Recife a 08/04/1999.
CÂNTICO DUAL
a Itérbio Homem
De Deus a mim,
nenhum segredo cabe:
Vivemos sempre a sós,
os dois, perenemente;
o pouco que aprendi
(da morte)
Deus o sabe.
O que meus dedos tocam,
agora,
Deus o sente:
Silêncio algum separa
meu canto de seu canto
que o sol nos une e abre
visão de outra visão.
A cor de minhas vestes
mudamos,
Deus o sabe:
A vida se consente
em Nós, presentemente,
e sendo a morte o fim
em minhas mãos não cabe.
(Alicerces da Solidão)
O PÁSSARO
a Ladislau Porto
Distingue-se do vento por ter asas
e cores impossíveis para o vento:
Voando pelo ar, vem livre e lento
unir-se à solidão de nossas casas.
Mas vento é, como disfarce e voo,
e bojo de canções arremessado
em plumas pelo céu, equilibrado,
que a vida de ser leve transformou-o.
Ou vento já não é, mas é aurora,
que uma aurora nas plumas permanece:
Pelos ventos da tarde a tarde esquece
e canta claro e leve como outrora.
Em pouco voará, cantando a esmo
a incerteza do céu e de si mesmo.
(Alicerces da Solidão)
Extraídos de A NOVÍSSIMA POESIA BRASILEIRA. Seleção de Walmir Ayala. Rio de Janeiro: 1962? (Série Cadernos Brasileiros, 2)
ITINERÁRIO ÚLTIMO
Ao morrer: um camponês
- numa rede em suspensão -
quatro outros vão levando
(por caminhos que não findam)
a sualva solidão.
Todavia, ah, todavia,
morre e morre o camponês,
vai e vem, e se oferece
no casulo de algodão.
Entre alfazema e alecrim
vai e vem
morre e more, e não tem fim
ou a morte
não tem caixão.
SONETO DE LINHAGEM
A Edmir Domingues
Ao vestir-me de branco, ressuscito
a glória de meu pai - a de ser puro:
a sua barba aproximando os seres
como um lírio de paz ou de sossego.
Meu porte branco e o porte do passado
passeiam nesta tarde paralelos,
conquanto este sorriso não complete
aquele que de amor deixou meu pai.
Meu pai guardou-se em mim. E permanece
na alvura natural de minhas vestes
exposto ao sol, ao sono e ao desespero.
Em breve passaremos já cansados,
deste meu corpo ao corpo de meu filho
— ambos nele por fim ressuscitados.
ALVES, Audálio. Canto por enquanto. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1982; Brasília, DF: Instituto Nacional do Livro, Fundação Nacional Pró-Cultura, 1982. 202 p. 14x21 cm. Col. Bibl. Antonio Miranda
CANÇÃO PARA O REENCONTRO
Virgínia,
estou saindo de mim/ e
peco-te:
saias o máximo de ti.
Naquela esquina
nos encontraremos.
Digo-te:
Eu tenho urgência
de cores e limites, / e,
sob teu corpo,
quero cobrir-me, hoje,
dessa paisagem que levas.
A CHUVA
Por trás de tudo ® de todos,
quem
se pôs
assim molhado?
De que mãos
cobre as estrelas
altas, retém a luz
e vem bater no telhado?
Mas, quantos se foram? Quantos?
Por que os mortos não choraram,
antes?
Certamente um mar sem margens — o
do horizonte das horas —
rompeu o azul e desagua.
Ou longe, onde esta noite
muda de escuro ou de leito,
de fome
— de fome e frio —
um menino, ante as estrelas
(que havia)
pôs um punhal
O
O RENEGADO
Depois do sacrifício de ser
— e ser por tantos anos —,
então esqueço meu nome
e vou levando quem fui:
suspendo sobre meus passos
a dimensão do cadáver.
Com ele
prossigo:
será que devo acordá-lo
e deixar que reclame
seu lugar no trânsito?
ALVES, Audálio. Romanceiro do canto soberano. Rio de Janeiro: Ediora Leitura, s.d. 14x20,5 cm. 82 p. “Orelha” do livro por Fausto Cunha. “ Audálio Alves “ Ex. na bibl. Antonio Miranda
AQUARELA DAS COMBATENTES ANÔNIMAS
DE TEJUCOPAPO
Vejo-as em torno, ou sucessivamente
recuam sonhos às camadas do ar?
São ventos ou são aves esse bando
de circunstâncias leves a passar?
Em derredor, palmeiras e canários
— ou ares de plumagens amarelas.
Em mim, sem sono, o iniciado sonho, e,
no espaço, a porta de retorno delas.
Vê-las? Vê-las assim: a entrar e sair
sem sepultura, e,
entrando e saindo, todavia vê-las
fixas e eternas, nítidas à luz
desse verão suspenso na gravura.
Vê-las à cor desse papel de que elas,
fitando ao longe o campo em que lutaram,
avançam à luz estanque da aquarela.
Seus nomes? Tão só nos dá o convívio
à mesma solidão das cores em que habitam.
Um dia,
chegados ao papel, perguntaremos:
Lutastes? Com que armas? — A fome, a fé
e a solidão de um salto que esquecemos.
Mas, sem nome e sem armas, hoje vibram
e à fúria do regresso se equilibram.
Vê-las? Vê-las assim: a entrar e sair.
Pois vê-las, a exemplo das flores e dos frutos
— olhos de espreita do verão que passa —,
é não as ver,
no eterno voo mutilado, garças:
como a fazer dos próprios seios, léxico,
para inscrever sua glória na fumaça.
Vejo-as em voo e, entanto, nem reluto:
Morreram já por mim, morro por elas
— que, ao contemplá-las, meu olhar as nutre.
Sob meus pés, mais grávidas e belas,
estão sentadas sobre um cais de ossos,
e aguardam-nos de branco as caravelas.
ALVES, Audálio. Princípio áspero de uma canção sem terra. Canto agrário. Rio de Janeiro? Editôra Leitura, 1962. Livro inconsútil (cadernos e ilustrações em folhas soltas). 28x37 cm. 28x37 cm. Ilustração de Francisco Brennand (5 gravuras fora de texto). Tiragem: 200 exs., e cinco com as letras a, b, c. d, e, rubricados pelo autor. “ Audálio Alves “ Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, exemplar que pertenceu à coleção particular de João Cabral de Melo Neto e de Marly de Oliveira, doado à Biblioteca Nacional de Brasília.
GLOSA RURAL
Estou sozinho em meu leito.
Estou só,
e tão só. Enquanto estou
em mim,
sonhando está meu país.
Ah,
Estou sonhando em meu leito
e estou sem
a palha que cobre o sonho:
A mim,
o sonho vem de oito montes.
Ah,
Sonhando fora do sonho,
vou e venho
dentro e fora de minhalmma.
AVES GUARDIÃS
Entre rudes castanheiros
de flora d´água e com fruto,
esvoaçam leves asas
aves rijas, ouriverdes:
plumas rijas de hastes móveis
ou bandeiras em rebanho.
Aves verdes, guardiães
— mais que azuis, mais que amarelas —
são elas: maracanãs.
São dos ares geratrizes
(e o início vai nas asas)
ou sementes são das cores.
Entre nós são aves
como pássaros de sala,
ou bandeiras aprendizes
do espelho de nossa fala.
Guardiães são elas,
entre signos azuis
e manchas amarelas.
CANTIGA DA TERRA INÚTIL
Vem a flor e vão-se os frutos
deslizando em terras planas,
como os dias vindos vão-se
do celeiros das semanas.
Ninguém que os colhas na cor
de seu destino diário,
que os tome e os multiplique
e lhes dê itinerário.
Daí que rochas contemplam-se
em seus diversos tamanhos,
e em derredor delas pastam
o silêncio e seus rebanhos.
Daí que fujo inconsútil
dessa para outra terra,
porque se toco em meu búzio,
—dele o canto sai inútil.
Página publicada em fevereiro de 2009. Ampliada e republicada em fevereiro de 2014. Ampliada e republicada em agosto de 2014. Ampliada e republicada em novembro de 2015.
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