CÉLIA MUSILLI
(Londrina, Paraná, Brasil, 1957) é jornalista e trabalhou no jornal Folha de Londrina. Autora de Sensível desafio (poesia, 2006) e Todas as mulheres em mim (prosa poética), 2010).
101 POETAS PARANAENSES (V. 1 (1844-1959) antologia de escritas poéticas do século XIX ao XXI. Seleção de Admir Demarchi. Curitiba, PR: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. 404 p. 15X 23 cm. (Biblioteca Paraná)
SOB UM CÉU DE ACASOS
há um tempo em que as ilusões se dissipam
e a corda que nos sustentava se rompe
há um tempo em que as hastes se curvam
derrubando as flores soberbas
os botões que seriam buquês
há um tempo em que as pedras trincam
raridades se partem
achados se perdem
e ninguém sabe aonde foram parar os poemas
os guarda-chuvas
os sortilégios
os pássaros
as bonecas das meninas mortas
os chapéus que sumiram na ventania
há um tempo um tempo um só tempo
depois não há mais tempo
porque soaram as sirenes que proíbem a fantasia
a realidade não acolhe planos|
sob um céu de acasos e sonhos minados
QUASE A INFÂNCIA
na tarde líquida
caramujos deixam viscosidade e grude
entre as árvores
cascas camuflam-se nos troncos
até que antenas marrons
despontam para lembrar
que é tenso e úmido
lamber escargots
como o primeiro beijo
prossigo entre as folhas
em rotas de seda
tecelã da brisa que acende
a memória de um canto breve
até a última ciranda
perdida nos galhos
trincar a fruta
entre a língua
o gozo
e o sumo
FINISHED
porque há canções de chegada
e há canções de partida
o coração tomo pela mão
quebrável
no último beijo
transversal de línguas
poliglota falo de amor
delicadezas doem
não sei se já disseram
mas você sabe como matar pássaros
SONO CÓSMICO
há dias em que não sabemos
a que tribo pertencemos
a que rio
a que pântano
a que reino em flor
em barro
quinta-essência
carne e lágrima
matéria enigmática
poeira galáctica
que expele o futuro dos homens
mas não há nada
que os deuses confabulem
que valha perder o barulho
da chuva
e aí, tanto faz,
inseto, planta,
a humanidade possível
a expressão do inexprimível
que oscila entre a solidão
e a beleza destinada à
construção das pétalas
ou das palavras
eu, mulher mandrágora,
bebo o orvalho dessa noite
e estico mebros
seivas e raízes.
enfeitiçada pela vida
alcanço o húmus
das árvores dos quintais
e, sem incomodar ninguém,
volto à terra
adormecendo em meu sono
de auroras boreais.
Página publicada em junho de 2016
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