ADERALDO CANGACEIRO
Aderaldo Cangaceiro, o de muitos nomes: Cego, Luiz Cangaceiro, Dedé, Adercego. Aderaldo Luciano – o de batismo. Paraibano radicado no Rio, o cabra é uma lenda nele mesmo: blogueiro erudito, colunista da Revista Confraria, professor universitário, cangaceiro incógnito da urbanidade e filho de cangaceiros temidos na região de Areia – ele reúne, em sua figura, o escritor de vanguarda e o cantador popular. Combinação do poeta que chega com um livro de estréia já cheio de histórias e trajetórias. O Auto de Zé Limeira, muito antes de encerrar-se neste livro, tornou-se um dos sucessos do grupo Cabruêra, musicado por Arthur Pessoa e ouvido no mundo inteiro. E é talvez um dos mais belos poemas populares urbanos compostos nestes últimos anos, lançado ao desafio de redesenhar para Zé Limeira, o cantador lendário das terras agrestes, um destino outro neste nosso centro regado a pó e aço. Fosse somente isso, já teríamos uma jóia, mas este livro inclui ainda os poemas O coração da madeira e As marteladas. Mais recentes na obra do autor, e, por sua vez, ainda mais radicais, abrem novos horizontes para a aparentemente estanque poesia vinda do Nordeste, sem cair no regionalismo redutor ou no exotismo marginal. As marteladas, sobretudo, desce sobre o crânio do leitor com força de épica antiépica talhada no dente e repente concretista, fundando uma cosmogonia própria para a poesia do seu tempo e lugar de errância. Aderaldo, antes de tudo, é um fabbro versado na arte de versejar, um Pound do Sertão, refazendo a rota barrenta dos trovadores da caatinga para reinventá-los, assumindo as personae de seus próprios mestres. Zé Limeira, o maior deles.
Márcio-André
Fonte: http://www.confrariadovento.com
CANGACEIRO, Aderaldo. O auto de Zé Limeira. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2008. 74 p. 12X18 cm. ISBN 978-85-60676-10-1 Imagem da capa: Ciro Fernandes. Col. A.M.
“O Auto de Zé Limeira foi escrito em 2001, depois de uma conversa com Zé Guilherme Nogueira, então percussionista da Banda paraibana Cabruêra. (...) Naquela conversa, Zé me pediu um trabalho meio ópera, meio cantoria, para apreciação do grupo e uma posterior montagem de espetáculo. Artur Pessoa musicou uma parte e a banda gravou-a, com voz do próprio Zé Guilherme, em seu segundo disco, O samba de minha terra, lançado na Europa como Proibido cochilar — sambas for sleeples nights.” (...) “A pressão subiu e resolvi publicar a versão completa do auto, com suas cinco partes, acrescidas de mais dois temas inspirados na poética dos cantadores repentistas nordestinos, como flexibilidade temática, vocabular e sintática.”
Despedidas
Quanto aos sonhos do Homem, eu que narro,
Não me alembro de tê-los anotados.
Mas se o sonho se perde num escarro
E as lembranças sucumbem aos bocados,
fará que se alembrar do sonho alheio,
fará que martelar no aperreio?
Martelar quer dizer bater martelos.
Sextilhar, a matraca das sextilhas.
Castelar, pois seria erguer castelos.
Armadilhar, armar as armadilhas.
Zé Limeira, portanto, martelou,
Sextilhou, castelou, armadilhou!
Sexta-feira da paixão o tempo pára.
Não o tempo contado nos relógios,
Mas um tempo que a fé cristã instaura,
Da paixão que fugiu aos necrológios.
A tarde traz nuvens desenhadas
Que assassinam o céu apunhaladas.
O meu medo era o Cristo ali deitado
Com o povo a beijar seu manto santo.
Um cheiro de morte e de pecado
Sentimento de dor e de espanto.
Zé Limeira despiu a fantasia
Ao mostrar-me que tudo é heresia!
É loucura o mundo, seus abraços,
Vaidade, correr atrás do vento.
Lucidez é a soma dos cansaços
E a subtração do pensamento
Zé Limeira escondeu-se lá na Serra
Do Teixeira, aonde o bode berra!
Chego ao fim do relato duvidando
Do engenho empregado à narrativa,
Pois se a pena quer pássaros voando
Toda ave quer ver a pena viva.
Fecho a tampa do poço da lembrança
E sepulto meus mortos de criança!
Página publicada em novembro de 2013.
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