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ANTONIO BARRETO
Antonio Barreto (Antonio de Pádua Barreto Carvalho) nasceu em Passos (MG) em 13 de junho de 1954. Reside em Belo Horizonte desde 1973. Morou também em algumas cidades do Oriente Médio, onde trabalhou como projetista de Engenharia Civil, na construção de estradas, pontes e ferrovias.
Tem vários prêmios nacionais e internacionais de literatura, para obras inéditas e publicadas, nos gêneros: poesia, conto, romance e literatura infanto-juvenil.
Participa também de várias antologias nacionais e estrangeiras de poesia e contos. Foi redator do Suplemento Literário do Minas Gerais, articulista e cronista do jornal Estado de Minas e da revista “Morada” (BH). Colabora com textos críticos, poemas e artigos de opinião para “El Clarín” (Buenos Aires), “Ror” (Barcelona); “Zidcht” (Frankfurt), “Somam” (Bruxelas); ” : e outros periódicos. Atualmente coordena a Coleção “Para Ler o Mundo”, da Formato Editori.
Fonte: http://www.palavrarte.com/equipe/equipe_antbarreto.htm
“Com a sua descontração, descondensação, desconcentração e desestruturação — e ainda com a alegria do seu mal-dizer e as galas e graças de sua criativa galhofa — Antonio Barreto se impõe aqui, e galhardamente, como uma voz nova da poesia brasileira. OU uma fala nova, e vasta: vatafala. O poeta falou e está falado.” Lêdo Ivo
De
O SONO PROVISÓRIO
RJ: Livraria Francisco Alves, 1978
(...)
E descubro sempre, depois de tossir fumar
cigarros e limpar armários
que o homem coleciona sinfonias domésticas
como quem procura um membro da família
numa cidade estranha e afina seus instrumentos
com o ouvido dos outros
Mas não será preciso que o corpo a fala da noite
para plantar no teu sangue esta cidade
Nem mistérios de portas e nus fantasmas
para timbrar tua pele
com meus dedos
Onde se encontram os vértices da amargura
aí sim, será preciso meu mugido
Quando cortarem as unha do teu pé
e esfolarem da memória meus sentidos
Nunca mais quero deixar
Deus sozinho dentro da geladeira
Lugar de Deus é num envelope branco
branco como as pombas as bombas da paz
Sim, embora eu possa ir para o quintal
apanhar goiabas, mangas, melancias
resfriados, minhocas e apagar a luz
do dia
ainda é hora de Deus descansar dos homens
dentro de alguma gaveta
ou numa
lata de sardinhas
Que amanhã todas as famílias irão para a mesa
com as barrigas doendo de alegria
e comerão Deus com macarronada
e comemorarão com tiros de festim
a chegada, a chegada, a chegada
e os maridos limparão a boca
com lenços estampados
e farão sinal da cruz na testa
longínqua dos filhos e das esposas
e todos repetirão o “São Monetário
que estais na seção de vendas
santificado seja
o vosso crédito
nos ossos diadiários
de nossos salários
na embalagem plástica
do sangue pasteurizado
Daí-nos hoje
como sempre
em prosa e verso
o avesso do pão
e a pílula
Venha a nós
vossas vitrines expostas
empacotadas
limitadamente
espaço aberto das multinacionais
assim na terra como no sal
para o perdão dos recados
secretos códigos
minerais, amém
E A MÁQUINA VOS PEDE PERDÃO, SENHOR, PELA
POSTURA
DOS ÍMPIOS PELA
COSTURA
DOS JUSTOS PELA
ATADURA
DOS MORTOS
porque o dia é consumado
entre
os
frutos.
Santa Fome seca na garganta
cheia de vazias noites nos olhos
bendito é o fruto da nossa e vossa
morte
em cruz.
Ave
luzes estilhaços sangrando o asfalto
e o soco dobrado dos sinos no espaço
e o aço vermelho fuzil da aurora
dos nefelibatas em pus.
De graça seja o chope e o cinema
esperando por nós, sonhadores,
nas cotações da Bolsa de Valores
assim na vida
como na morte
Agora e na hora de nossa sorte
amém.”
E com as barrigas doendo de alegria
comerão Deus com leite condensado
e pudim
e fumarão cigarros de agonia
arrotando Deus
nas calçadas, nas calçadas, nas calçadas.
LITURGIA DA PALAVRA
multifaça ou multilavre
o que de livre
(a fala)
não te impeça
de lavar essa face
(essa promessa)
de lavrar suas manhãs
na mesma farsa:
o demarcado corpo da palavra
o remembrado porto da batalha:
agulha agrária tecendo o sono
de a cor dar na mão do mundo
e sem receio
de livrar a memória e seu per-
curso
e da elaborada ressonância do silêncio:
estampilha clara e nada nos ouvidos
reouvir então os clamores dos poetas:
(mudos galos sem manhãs e sem poleiros)
De
VASTAFALA
São Paulo: Scipione, 1988
O MANIFESTO
Nós todos, poetas da usura menor,
devemos de dividir nossas dívidas
e nossa dúvidas
como grandes capitalistas
em falência
Nós todos, poetas na usura do amor,
precisamos tirar os sapatos, os suspensórios
e as gravatas
como nudistas num campo
(de concentração)
Nós todos, poetas na usura do suor,
necessitamos sujar as mãos de óleo
e cavoucar esta terra cansada
como grandes tatus da consciência
Não nascemos da barriga de um abutre
mas a cada dia deglutimos
e defecamos
as temperadas carniças
da humanidade
Nós, poetas dessa música sem ritmo
tocamos flauta com as mãos no bolsos
se o certo é rufar tambores
e trombetas
com as mãos acima das cabeças
Se o fardo que carregamos nas costas
não é pesado na balança dos fardados
vistamos pois a poesia de medalhas
e marchemos poetando à soldadia
Se sob o sol aumentou a prestação
e o operário não opera a construção
Se o tijolo após tipo a fome cresce
e as betoneiras vão cantando a mesma prece
Falemos então, poetas, dos pequenos
das barrigas latino-americanas
dos lamentos inouvidos, dos murmúrios
e das dores do parto que abortamos
Dancemos, pois, a polca proletária
neste palco onde ninguém é proprietário
Nós todos, poetas, operários,
precisamos sujar as mãos com o mesmo óleo
e cavoucar o cansaço dessa terra
sem contrato na Carteira de Trabalho.
O ESCURO
A roupa que trago comigo, Olímpia,
tem cheiro de pastel e concreto armado
é dura como uma palavra doce
dita no momento errado
Extraído de
POESIA SEMPRE. Ano 18. 2012. Número 36. Edição dedicada a Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, 2012. Editor Afonso Henriques Neto.
Quando Walt Whitman volta à Rua Guaicurus
Para Wander Piroli, um baita
Às três horas da manhã
o país assim um cheque sem fundos
No Bar do Cão Vagabundo
/ Cintura fina tece
a cicatriz das horas / E asa de Ezra esbarra
na vitrola do “Brilhante” /
Um estudante
vende delírios nos bares
e há sinais de sirene tocando
rendando a guarda dos galos
/ Na cova de Maiakovski
uma bacanal de esqualos / Há elos de Eliot na hélice
dos gargalos
Perto da manhã
os rádios pedem notícias
e os pedreiros sovam
os fantasmas nas marquises.
Só as meretrizes permanecem calmas.
/ Adélia Pravda ensina
que a bailarina vódica / A noite é uma menina
e a Lua alcoólatra / Lá fora
uma navalha
se desfolhou
na brisa
/ E um bêbado rumina
sua noite gótica /
De repente as ruas correm de medo
as esquinas se abraçam com cheiro de pólvora
no primeiro tiro debandando pardais.
Nesse dia
(quando Walt Whitman
voltar ao “Lua-Morta”)
até as varejeira zumbirão
com outra nota.
Página publicada em março de 2008. Ampliada em agosto de 2018. |