Foto de Luis Tajes
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OSWALDINO MARQUES
(1916-2003)
Nasceu em São Luis do Maranhão e faleceu em Brasília. Poeta, ensaísta, tradutor, teatrólogo. Viveu e participou de movimentos políticos e literários no Rio de Janeiro até ingressar na Universidade de Brasília. Esteve como professor visitante na Universidade de Michigan, EUA.
Obra poética: Poemas quase dissolutos (1946), Cravo bem temperado (1952), Usina de sonho (1954), A dançarina e o horizonte (1977, Livro de sonetos (1986).
LIED
Perdido em devaneios no extenso litoral,
Só e tímido sob a ampla e côncava tarde,
Plena do grave coral das vagas estuantes
E do ritmo violento das ávidas gaivotas,
Voltei meus olhos espantados para ti, ó sol,
E me deixei banhar nas tuas cascatas cintilantes.
Lá poderia ter-me envolvido na sombra violácea das montanhas.
E à hora do poente cingir-me com uma coroa de estrelas.
Lá poderia ter-me dissipado na bruma da ressaca,
Ou insensivelmente aceitar dos rochedos o doce convite à inconsciência,
Ou fragmentar-me em límpidas conchas e refletir sorrindo teus raios criadores,
Tive forças, porém, para te abandonar.
Parti — sobre a areia deixei apenas o nome de alguém escrito.
POEMA OSCILANTE COM DELÍRIO
No volátil abril
Labaredas e espelho
Oscilo no gume
de lúcida viagem.
Aderno, de chofre,
Ao refugir-me o passo
Ao fluido cardume
De vôos altos pássaros
Frechados para o azul
Aos gritos sobre a espuma
De uma mar paralisado
Que se recrispa e espluma.
É o doido tonteio
Do sonho ressonhado
Em pleno meio-fio
Sob o céu rasgado
De onde jorra o êxtase
Labareda e espelho
Sobre o homem que sangra
No abril delirante. Soneto Branco
SONETO BRANCO
Esse rugir do mar não te transporta
Para antes dos anjos, dos mitos ofuscados?
Não te remete a paragens anteriores
Nos rios de cinza, às chuvas de granizo?
Esse longo rolar de vozes graves
Não te despoja d’ódio convulsivo?
Não te faz esquecer o desenlace
Das fontes, da brancura das origens?
Pois a mim me faz recuar a auroras
De êxtases, cantigas e presságios
Com violinos comovendo feras,
E cruzeiros de aves, as redes se abrindo
No alto, ameaçando peixes e estrelas,
— Oh, penedos! Oh, ventos! Oh, nostalgia!
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De
O PRISMA E O ARCO-ÍRIS
São Paulo: Roswintha Kempf Editores, 1986
POEMA DELISEIOSO
O gesto que a minha Amada faz para sopesar o seio e desrechear o corpete
Tem algo do gesto da semeadura na manhã adolescente
Do volteio da asa da pomba no céu diáfano
Do esbojo da gaze da cortina ao esbarro da brisa
Do reempino da vela branca sobre o esfervilhar da espuma
Do repentino tombo da lua engolfada na corredeira de nuvens
Do abalo da paina a uma lufada de vento.
E quando ela, para eu merendar o moranguinho,
Faz inturgescer, entre o indicador e médio, sua redondadivosa poma,
Sinto nos lábios o saboraromacreme dos deleites da infância
Dissolvo-me em doçuras suspenso de seus racimos.
Rogo, então, à Amada que me receba nos seus recessos assedamascados
Que me deixe gozalualeluirar em seustranslácteos blumores...
DERMOGRAFISMO
Escreve-me na tua pele
Faze de meu verbo carne
Que em teu texto eu me revele
Que em tua hóstia eu me encarne.
Meu nome grafa às avessas
Na polpa de teus seios-nata
Depois ao espelho, depresa,
Me retraduz, me refrata.
Verás que a sigla O N I D L A W S O
Em O S W A L D I N O se dessigla —
Deixa-me crucificado
Em tuas veias — me intriga!
Ou na seda de teu ventre
Abre meu verso maior
Para que, sec´los à frente
Te chamem de mulher-poema,
Sim te recitem de cor —
E se, no escuro, eu quiser
As minhas coplas reler,
Basta-me os lábios mover
Por tua demografia
Por ter cor Poesia!
De
POEMAS QUASE DISSOLUTOS
Rio de Janeiro: José Olympio, 1946
SÚPLICA DO ENCARCERADO
Ó ululante vento, leva-me contigo.
Transforma em asa o trapo miserável do meu corpo
E arrasta-me para o Sul, para o Fim, para o Não-
-encontrável.
Ó tempestade, aceita-me na tua aventura.
Sopra as velas do meu veleiro
E impele-me para o Norte, para o Princípio, para a
Origem.
Não me deixes enleado nestas malhas de urgentes
necessidades,
Desata os meus laços para que eu possa drapejar
dissolutamente.
Livre como as energias elementares,
Leve como a luz que flutua no dorso elástico das
vagas!
RITORNELO DÁ PUREZA AMEAÇADA
Minha ingenuidade por onde andas?
Minha menina não me abandones!
Ai! me corrompem as boas maneiras,
Já sei sorrir como um vilão,
Já sei curvar-me como um fantoche.
Hoje abracei um charlatão,
A um papalvo chamei de "mestre",
Já me assino "vosso servo humilde",
Já beijo a mão de imbecis madamas,
Já dobro a espinha como um camareiro.
Minha ingenuidade por onde andas?
Minha menina não me desprezes!
HOMO SUM
Há nos meus ombros vestígios de asas,
Guardo zeloso uma rica herança de voos;
Não esqueci, de todo, os segredos da levitação,
E me vanglorio de flutuar ainda como leve paina no
espaço!
Tem sua obscura razão este ingênuo amor pelas
nuvens,
Esta infantil ternura pelas franzinas borboletas,
£ o orgulho de atirar o rosto para as estrelas.
Mas, ai! apalpo no meu coccix também uma cauda
atrofiada,
Que em vão dissimulo e dissimulo com meu enga-
nador manto celeste.
Besta e anjo — um meridiano me corta em zonas de
luz e treva,
De um dos meus lados nasce a aurora,
O outro é a úlcera de onde jorra a noite.
Ai! Que desgraça ser o antípoda de si mesmo!
Viver se despenhando em violentas diagonais de
contradições.
A mão pura e a impura pendentes do mesmo tronco.
O olho cego e o são coexistindo na mesma face.
O lábio podre e o eterno modelando estranhas pala-
vras híbridas.
O HOMEM "EN ARRIÈRE"
Se minhas cismas ouvisses como a nota embaladora
Do frágil grilo sob a folha crestada;
Se os murmúrios se ordenassem na fina melodia
Que nasce no sangue, e tu a captasses;
Se a franja flui flutua por trás das palavras,
De tons impressentidos e suavíssimas pausas,
Desvendada a teu ouvido fosse de repente,
Ah! minha amiga, então me verias,
Sobrevoado de pássaros e batido de vento,
Difuso entre névoas a ferir meu instrumento.
De
Oswaldino Marques
Cravo bem temperado. Poema.
Desenhos de Aldary Toledo.
Rio de Janeiro: Revista Branca, 1952. 35 p. ilus.
Este poema-livro é um dos legados do nosso saudoso Oswaldino Marques! Hoje, restrito às coleções de uns poucos bibliófilos e algumas bibliotecas. Frágil, só os exemplares que foram encadernados resistiram ao tempo, como este exemplar que o poeta e crítico maranhense ofereceu ao ator Sadi Cabral, no ano de sua publicação, e que resgatamos de um sebo paulista. Como dizem os espanhóis: enhorabuena.... Aqui vai um fragmento do longo poema, a capa e uma das belas ilustrações. A. M.
O cânone severo
Estruturava sua
Pura arquitetura
De soluço e quartzo.
Em claros teoremas
As variações comentam
O austero coral:
Friso decompondo-se
Em formas inefáveis
A penetrar a alma
De alanceado gozo.
Fluidas teorias,
Liquefeitos timbres
Se alternam, atropelam,
Na cambiante fuga,
Mas a rígida lei
Que os rege e ordena,
Os faz refluir e
Pronto os dispersa.
Uma voz expõe o
Motivo; esta o retoma
Levando-o além
À outra recém-vinda;
A primitiva, agora,
De esfera remota,
Tece infatigável
Volátil contraponto:
Do chão ao céu se ergue,
Ao corpo sem asas,
Escada estonteante.
Vozes contra-atacam,
Enxames diáfanos,
Ora sucedendo-se
Em nítida hierarquia,
Ora emulsionando-se:
Neblina irisada.
Levitando íamos
Por meandros de acordes,
Jardins geométricos,
Domos facetados,
Poliedros de ordem,
Cristais de rigor.
Até que, num rapto,
A peroração se eleva
E nos rompe para sempre
As cadeias de forçado!
MARQUES, Oswaldino. A Dançarina e o Horizonte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. 100 p. (Vera Cruz, v. 255) 14x21 cm “Oswaldino Marques “ Ex. bibl. Antonio Miranda
Luthier
Pacientemente aprimorei os jogos do amor
Tenho o dom de fazer rimar os sentidos.
Sou o luthier de um instrumento fino suscetível de
[todos os cromatismos,
Não o firas com muita força, nem o pulseies com
[insatisfatória leveza —
Dá o toque exato e ressoarei em revoadas de vozes.
Se consentisses, te encordoaria toda de novo
Levaria ao apuro máximo a afinação de teus tons
Regularia teus registros segundo um módulo inédito
E enquanto tu mesma preludiasses tuas escalas de
[ardores
Eu te seguiria num &asso continuo fiel e indecepcionável.
Ah, bem quisera converter-me em ouvido para a tua
[melodia.
Mas, sabes? ambiciono também ser reinterpretado por ti
Premir sob o teu dedilhamento nervoso
Dissolver-me sob o desvario de teus anelos de perfeição
Toda a desabares sobre mim tuas vertigens e céus.
Página ampliada e republicada em abril de 2008; ampliada novamente em fev. 2009; uma vez mais ampliada e republicada em agosto de 2010. Ampliada e republicada em julho de 2014.
METADADOS: POESIA ERÓTICA, POESIA SENSUAL; POESIA LÍRICA
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