POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
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PIO VARGAS
(1964-1991)
Nasceu em Iporá (GO), em 7 de setembro de 1964 e faleceu 8 de março de 1991. Cursou apenas o Primeiro Grau na Escola Elias de Araújo Rocha, ainda em sua cidade natal. Há pouco registro biobibliográfico disponível sobre Pio Vargas. O certo é que levou vida meteórica, esgotada na vida boêmia de Goiânia. Ali crepitou nas casas noturnas, principalmente onde reinasse a efervescência cultural. Passou pela diretoria da União Brasileira de Escritores, seção de Goiás, e pela assessoria geral da Secretaria de Cultura do Estado. Idealizou as Edições Divagar e Sempre, de sentido marginal, que editou vários autores goianos. Promoveu recitais, festivais de música e semanas culturais pelo interior de Goiás. Edival Lourenço ressalta que “Sua poesia é densa e trágica, própria de quem traz pela vida uma agonia congênita, irremediável, desenganada, de quem chama para si as cólicas do mundo e lhes concede uma roupagem de alto requinte”.
Bibliografia: Janelas do espontâneo, 1983; Anatomia do gesto, de 1989 (Prêmio Bolsa de Publicação José Décio Filho); e Os novelos do acaso & o ofício de afagar efêmeros, de 1991 (Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, publicado postumamente).
ODE ANALGÉSIVA
I
a pátria é o embaixo das roupas.
é lá que dói e se desfazem
as linhas mínimas do ventre
o lacre avesso do silêncio
e o destino de selo intêmpere.
é lá o magazine de medos
onde quem sabe há calado
na caricatura de seus becos
ou no domicílio de seus fados.
II
eu não sei o que floresce
no abandono das pedras
e não me ocorre saber
que objetos compõem
as neuronias vitrines
da dor e suas glebas.
há mais de sabor
em não saber
e mais de ardor
em não urdir
o que vai pelas covas
do promontório,
o que fica de espanto
nesse alento provisório.
não me ocorre o que fenece
nestes dias rotundos.
o possível deus que me parece
é outro — a réplica do fundo.
ao milagre de ser vário,
o abismo : albergue estacionário.
SUCESSÃO
Depois que eu voltar
de dentro das molduras
apago os meus retratos
invento outras figuras
convoco os meus fantasmas
convido mil demônios
e dou posse a todos eles
no governo dos neurônios.
ANALEPSIA DO ABISMO
I
enterro vivo meu gesto.
até aqui trouxe dias e palavras
como signos ambíguos
débeis mapas
argumentos evasivos
o resumo inconcluso
do que julguei abismo
e superfície.
habita o âmago
no mais raso da face:
por isso trago à tona,
elo de sangue e aspereza,
a pugna de meus retratos
atônitos.
II
mantenho obtuso meu traço.
a memória constrói
espúmeos fantasmas
com os quais divirto
o inverno de meu plasma.
esse cotidiano agrário
foi o que sobrou como futuro
o meu sangue sem calvário
regando vales no escuro.
III
interno e vasto é meu grito.
até aqui trouxe dois olhos
e a visão cíclope dos pesadelos
como quem espalhou lâmina e dilúvio
para envenenar
o próprio espelho
ou se ferir em gumes turvos.
viver é um risco
na ordem dos calendários.
por isso abrigo incerto mangue,
condomínio de alheios viventes,
para manter a humanidade mesma
nos outros eus mais diferentes.
IV
mantenho obscura entrega.
pouco importa
um punhado de vales
para o adejo da carne.
é bem outra
a personagem que me assombra:
a dor em vestes dúbias
no endereço noturno
da face plúmbea.
VAGA LITÚRGICA
1
O volume da chuva
é que decifra
como no corpo eflúvio
é âmbar a dúvida
A porta que mais vence
é a que aberta permanece
e o corpo que mais sente
é nem sempre o que adoece
2
Que morte é natural
senão a que é sem leito
se nem só por sinal
traduz-se o que foi feito
O que por dentro queima
e teima em prosseguir
o fôlego-fátuo que anuncia
cenas do óbito a seguir
3
Vai mais longe
quem divaga
além de si aquém de se
a certeza que mais propaga
é a de quem menos disse
Nenhum lugar pleno existe
a menos que a invenção o faça
: o perdão é de quem insiste
no pecado não na graça
CAUSA COM SEQÜENCIA
O que intriga
é o musgo na palavra
o cárcere nas rugas
o triunfo do costume
e a carne no enigma.
O que reprime
é o músculo das horas
o ácido nos olhos
e o escuro gemido
de um labirinto em vime.
O que massacra
é o ofício das algemas
o leme das espadas
e a hipocrisia lúdica
de uma música sacra.
O que dói
não é a cinza de um riso
mas o conflito insolúvel
entre abismo e paraíso.
De
Pio Vargas
Poesia completa
Organizador, Carlos William Leite. Goiânia: R&F, 2010.
232 p ISBN 978-85-8748-003-3
“Pio Vargas tem um “eu” coletivo tão forte que chego a vê-lo muitos. De sua poesia consigo extrair a certeza do que digo, insistente: há uma geração recente que usa e abusa da modernidade, fazendo dela o principal elemento a interferir na criação. Este Pio Vargas me trouxe uma poesia fascinante que não se atrela a falsos modelos de invenção, mas flutua, inventiva, com os mais amplos e possíveis signos do fazer poético.” PAULO LEMINSKI
deve haver uma forma
de concluir sem finalizar
PIO VARGAS
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