POESIA GOIANA
Coordenação de SALOMÃO SOUSA
EDIVAL LOURENÇO
Nasceu em Iporá (GO), em dia 13 de agosto de 1952. É bacharel em Direito, aposentado da Caixa Econômica Federal em Goiás, onde foi gerente de Comunicação Social e Promoção Cultural. Participa de mais de 15 antologias e teve cerca de 50 premiações, dentre as quais, o Troféu Tiokô de Literatura-Prosa, no ano de 1992. É membro da União Brasileira de Escritores de Goiás, sendo seu diretor jurídico na gestão 1992-1994. Pertence ao Conselho Estadual de Cultura.
Bibliografia: Estação do Cio, poemas, 1984; A Centopéia de Néon, romance, Prêmio Nacional de Romance do Estado do Paraná, 1994; A Perpétua Utopia, contos, prêmio Bolsa de Publicações José Décio Filho, 1992; Coisa Incoesa, poemas, prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos; Mundocaia, contos, 2004; As Vias do Vôo, poemas, 2005; Os Carapinas do Sri Lanka, minicontos, 2005.
MÚSCULOS DO VENTO
O vento bole na flauta
Sua corda vocal
Imprime fruto na florada
Em seu passeio matinal
Esculpe na pedra a face
E na face a pedra final.
Todo vento
É sobejo
Do sopro seminal
Nas narinas do fantoche.
Vento! Vento!
Cigano dos tempos,
Leva a semente do instante
Para o horizonte mais remoto.
O amanhã
(fascinante) é face nova
A ser esculpida
Ao comando de seu toque.
MELOPÉIA ATROZ PRA CUÍCA E VOZ
(Com monotonia em or)
Quem sabe meu labirinto
Dê sentido a seu torpor
Quem sabe o seu ar livre
Calibre meu compressor
Quem sabe minha baqueta
Esquente mais seu tambor
Quem sabe o seu catarro
Dê sarro a meu estertor
Quem sabe o meu sexo
Lhe anexe ao Criador
Quem sabe o seu perfume
Sucumba o meu fedor
Quem sabe meu riso azedo
Azede o seu amargor
Quem sabe a sua baba
Embeba meu mau humor
Quem sabe meu desespero
Arrefeça seu pavor
Quem sabe seu prazer
Seja lamber meu horror
Quem sabe meu sal possa
Dar mais força a seu sabor
Quem sabe sua dureza
Dê firmeza a meu tremor
Quem sabe minha baliza
Localize seu vapor
Quem sabe a sua ida
Tenha vida onde eu for
Quem sabe a essa química
Denomine-se amor.
UM RESTO DE BATOM NA BOCA DA NOITE
Foi assim
sem premeditações
sem aviso prévio.
De forma súbita e cruel é que aconteceu.
Você chegou
feito um olor
irresistível
de terra molhada
brotado de dentro
dos engenhos do corpo
dos agrestes da alma. Você veio
brandindo a nova estação
e todo o encantamento
que ela podia conter.
Foi logo
revolvendo o esterco
a terra compactada
a areia estéril, as sementes
distraídas, os sentimentos
já mortos, estimulando raízes
ressequidas a novamente lançarem
estolhos
e rebentos.
Outra vez
olhos d’água brotaram
da terra crestada e baldia.
Regatos diamantinos rasgaram os tabuleiros
das campinas
rolaram-se nas vertentes
em cascatas de vidrilhos.
O deserto se fez oásis.
Voltou a se ocupar de relva
arbustos
arvoredos.
Sob sol e bruma
novamente o figo
o damasco
e a tâmara.
Novamente as pitangas
as amoras
os morangos silvestres
trataram de demarcar seus quinhões
na paisagem desde há muito devoluta.
Não tardou
para que, entre as borboletas
de mil cores, enxames
de vespas melífluas colhessem
o néctar nos cachos de flores das acácias
do cedro
da caraíba
da paineira
do jacarandá-mimoso
e produzissem mel com excedente
para adoçar a vida de todo ser vivente.
Novamente as codornas
as perdizes
as galinhas do campo
o ganso do banhado
o cervo da campina, a ovelha
leiteira, a lebre-saltadora
de fácil captura pelo falcão serviçal.
O vinho, o leite e o mel novamente.
Novamente o maná caído do céu.
Outra vez
os sanhaços
os canarinhos
os melros
os uirapurus teciam manhãs
em seus ninhos atados ao vento.
Pintassilgos e anus-brancos
executavam sonatas
em notas de bemol menor
ao cair da tarde
sob o arco das alianças.
Era quando o Senhor
com seus serafins
passeava calmamente pela viração do éden
e falava pela boca das cacimbas
pelo fulgor das sarças ardentes.
E ao pôr-do-sol
a juriti-canora
o sabiá-laranja
esbanjavam trinados.
Entregavam a noite aos vaga-lumes
e às estrelas
cujo crepitar era percebido
claramente
pela manifestação dos grilos
em suas cantilenas.
Pra depois repassarem aos galos
que regurgitavam auroras.
Você
– poderes de fada –
espargiu em meu caminho
o incenso
o ouro
a mirra.
Você
– meneios de serpente –
enleou-se em meu corpo
emurchecido, já quase refratário ao prazer
e dele retirou sumos impossíveis.
Foi como uma primavera temporã
impregnando quimeras de nirvanas.
Foi a boa nova
a canção divina
que reanimou forças
há tempos esquecidas.
Você
revigorou em mim
músculos e veias
dentes e vísceras
visgos e ossos
vistas e pele
como raízes mortas sob o chão ressequido
despertando-se com as chuvas de setembro.
Você
– flor ruderal
de uma estação esporádica –
foi a viração da tarde
que precedeu à passagem do Senhor.
Com a mesma sem-cerimônia
com que chegou
você se foi.
E
sob a tirania de sua ausência
a mágica estação se esmoreceu
desligou-se como um aparelho de TV
só restando agora
este sentimento
nostálgico
este ressaibo de absinto
um resto de batom
na boca da noite.
ESPÓLIO METAFÍSICO
Há quem duvide da alma.
Ao contrário, sinto que me habitam
Pelo menos duas:
Uma que é mansa
E se espreguiça
Ao sol da manhã;
Outra que é fera
E esturra ao pôr-do-sol.
Uma que é macia
E a outra que é áspera
E se exaspera e se lasca
Sem aspas de cortesia.
Se uma quer açúcar;
A outra, pimenta e sal
E ressaibo de absinto.
Uma que é ímã puro;
Outra, pura dissipação.
Uma que é clara canção
Outra, tambores no escuro.
Uma que é afeto e ternura;
Outra, dureza e vingança.
Uma que se santifica
Outra que se profana.
Uma quer apenas trilhar;
A outra, abrir caminhos.
Uma busca o equilíbrio;
A outra, a queda espetacular.
Uma visa o aconchego;
A outra luta por odisséia.
Se uma pede por água
A outra se incendeia.
Se uma se ajuíza
A outra se desidéia.
Se uma está quite com Deus
A outra deve a Deus
E à aldeia.
E quando chegar a hora
Do Juízo? Afinal,
Como será o inventário
De meu espólio metafísico?
Como vão acordar
O diabo e Deus
No formal de partilha?
Com quem ficará
A alma insana?
Quem vai reivindicar
A alma insossa?
E as almas – borboletas paradoxais
De meu corpo-crisálida –
Assim apartadas
Guardarão a memória de mim?
Ou serei descartado
Como um ramo resseco
Do que um dia foi
Um buquê perfumado?
Jaz mim?
LIDE COTIDIANA
Eis que campeio palavras
Entre grotas, outeiros, matagais
Na vastidão do cerrado léxico
Apascento-as horas a fio
Para depois tangê-las
Ao estábulo do verso.
Na lide cotidiana
Domo xucras palavras
Ensino-lhes a marcha
De novas métricas
Laço sentidos ariscos
Tosquio rimas enlanadas
Cavalgo metáforas rebeldes
Ordenho significados
Para finalmente
Sobre o olor e a maciez do feno
Deleitar-me com as carnes
Do poema.
Mas, um detalhe me decepciona.
Um ínfimo detalhe.
Pois vejo que o til inútil
De sutil cobertura nasal
Não protege da chuva
A palavra pão
Cujo sentido se esboroa
Antes mesmo da deglutição.
LOURENÇO, Edival. A caligrafia das heras. Poemas. Goiânia, GO: R&F Editora, 2012. 192 p. 13,5X21 cm. ISBN 978-85-87481-72-6 “ Edival Lourenço “ Ex. bibl. Antonio Miranda
Tempo-vento
O vento bole na flauta
sua corda vocal
imprime o fruto da estação
em seu passeio matinal
esculpe na pedra a face
e na face a pedra final.
Todo vento
é sobejo
do sopro seminal
nas narinas do fantoche.
Vento! Vento!
Cigano dos tempos,
leva a semente do instante
para o horizonte mais remoto.
O amanhã
(fascinante) é a nova face
a ser esculpida
ao comando de seu hálito.
Prestação de serviços
Em seis dias Deus fez o mundo
mas no sétimo descansou.
Agora
para fugir do tédio
da aposentadoria precoce
mandou divulgar em púlpitos,
decalques, panfletos e outras mídias
alguns serviços em domicílio
e intervenções localizadas:
reboques, curas, curetagens, consolos,
reparos, milagres supérfluos
e outros ofícios de pequena monta.
As igrejas
são quiosques
dos bicos de Deus.
LITERATURA GOYAZ. Antologia 2015. Adalberto de Queiroz, org. Goiânia, GO: Ed. Livres Pensadores, 2015. 160 p. Capa: Thálita Miranda. ISBN 978-85-69024-05-7 Ex. bibl. Antonio Miranda
REMÉDIOS
Confesso:
sou mesmo um ateu medicamentoso!
Creio mais
é nas apalpadelas do doutor
nos chazinhos de minha mãe
nas massagens de minha mulher
no princípio ativo do carinho.
É pela poesia
e pela ternura
que consubstancia
o processo de cura.
Sou propenso a crer
é no poder curativo dos placebos
no raminho das benzedeiras
no poder universal das panaceias
nas correntes de orações
das comadres solícitas
despertando a cura
do centro vital do sofredor!
O que cura é o amor;
da fratura ao tumor!
O resto, meu amigo,
o resto é superstição química
— conversa de mercador!
O ZUMBI DO MEU OUVIDO
Meu ouvido sé distingue
o que é som do que é ruído
porque um é agradável
e o outro, aborrecido.
Meu ouvido malcriado
quão ingrato ele tem sido
se eu lhe agrado com sons
me retribui em zumbidos.
Zum é o tesão da foto
(sua pose com libido)
já o zumbido é fantasma
o zumbi do meu ouvido
que escuto até se não ouço
pior que qualquer ruído
uma cigarra maçante
a me deixar aturdido.
Extraído de
POESIA SEMPRE. Número 31 – Ano 15 / 2009. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura. 2009. 217 p. ilus. col. Editor Marco Lucchesi. Ex. bibl. Antonio Miranda
O vinho dos dias
Para Tânia Eloisa
‘
Os dias são frutas
plenas de caldo e viço
num daqueles cachos
ainda apegados à videira.
A gente colhe os dias
transporta os dias
que se ferem pelo mau jeito
no assoalho da carroça.
Os dias a gente esmaga
com os pés na tina
dos ofícios e do seu sumo
faz o vinho
de safra possível.
Vem, amada minha!
Vamos nos embriagar
com o vinho desta safra
depois a gente se deita
sobre o bagaço dos dias.
E as sementes lançadas ao solo
vão escrevendo novas videiras
com caligrafia de cipó.
Olho d´água
Assim escrevo o poema
como Deus escreve o rio
entre o fluxo e o dilema
o pleonasmo e o eclipse
sem me importar se o veio
vem ou vai para o sertão
se nele dá barco a passeio
ou nem dá navegação.
Tiro por Deus que se atreve
entre ofícios e inzonas
e de gota em gota escreve
regatos e Amazonas
com seus tiques e sotaques
e dicções e corredeiras
suas gagueiras e baques
declamando cachoeiras.
Não sei que rio farei.
Apenas destilo água
de sentimentos sem rei
nesta vida sem Pasárgada.
Pode ser que nem dê rio
tão somente uma lagoa
mas por não achar caminho
repentinamente voa.
A casa da infância
Ó magnífico enlevo
que me envolve nesta hora
ao retornar à casa de menino!
Novamente adentrar esse quarto
deita-me neste catre ao meio da tarde
não uma tarde qualquer
mas uma tarde reavida
pelas magias da memória
no que ela tem de mais nostálgico
e seguir no vão da janela
o revoo dos urubus
azuis pela distância
como nos velhos tempos
anteriores à malícia.
A voz cava de meu pai na cozinha
(que silenciou há mais de meio século)
contando histórias pra minha mãe e ela
apenas sorri como quem se ilumina
enquanto a chaleira
exala o cheiro de erva-cidreira
um galo velho arrisca um canto rouco pelo pátio
golpes de um machado moroso ressoam ao longe
em resposta ao ritmo débil
do monjolo nos fundos do quintal
— o pulso do tempo.
Os ventos de maio (de um maio de mil
novecentos e antigamente) resvalam pelas frestas
agitam as palmas das macaúbas
esfregam os troncos de bambu
na touça ao lado como se fosse
o ranger do eixo sem graxa das galáxias
que se movem ao redor de mim.
Meu Deus! Meu Deus!#
Meus olhos embaçam
meu coração pulsa descarrilado!
Nesta hora
tudo é perfeição
e dor infinita!
(14.07.08)
LOURENÇO, Edival. Estação do Cio. Poemas.Capa: Gomes de Souza. Ilustrações Carlos Dacruz. Prefácio: Anatole Ramos. Goiânia, GO: Gráfica e Editora Piloto Ltda, [1983] 71 p
Exemplar. doado pelo livreiro José Jorge Leite de Brito.
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APOLOGIA DO PRAZER
Vou antes (voante)
sorver (só ver e me dissolver)
seus peitos
suspeitos
por tudo, portanto
desafiantes.
Vou correndo de cor lendo
seus lábios (astrolábio
que norteia meus dez tinos?) —
(laivos de astro
fu(l)gindo, fingindo
indiferença de fugidia fera.
Existir — (a)pesar
(d)os (an)seios;
nave(gar) no corpo do rio
mesmo que (n)a face (na)core,
ser um todo: anca, cara e carranca.
(Prazer : Verbo de substantivo
conjugado que,
rude, range, arde
e urde a vida
entre os liços e entrelaços
eriços no tear dos quadris).
Vou antes (esvoaçante)
ainda que o futuro nos pareça
passado (ru)minado.
Existir: pesar os seios —
naves do corpo
fontes do rio.
(Prazer : ação de objeto
simulada, que capta o ser
pelo avesso no arremesso
de seu tacape
na fúria dos tufões
intergalácticos
varrendo estrelas
meteoros e ânima
que pelos poros evapora).
Vou antes (voando montes)
cair nos (a)braços de l´âncora
da moça de louça
a doçura : loucura?
sorver seus peitos
suspeitos
pontudos portanto,
ainda que o presente
nos pareça (ful)minado.
Existir no escárnio da carne —
filhos da fenda
de fundo pecado,
navegantes (naves voantes)
nos trâmites do desejo
— de fendas e falos —
ante o bocejo lânguido
no relâmpago dos (d)entes.
(Prazer : aval da existência
no banco do pecado).
Vou antes (volante)
sorver suspeito o todo:
peitos, carrancas, coxas e ancas
ainda que o passado
nos pareça cristal
(conta)minado.
ENCANTAMENTO
O que fazer deste fogo (con)tido
a me queimar o peito em desalento?
Prisioneiro me fez o sofrimento
e me arrasto qual gato combalido.
Mas no momento louco da libido
em que a dor maior faz-se encantamento
saltaremos telhado e cata-vento
como os felinos no cio de alar(ido).
Nosso rumor acordará vizinhos
os quais nos olharão (boqui)abertos.
Nada vai deter o que a alma conluia:
Nossas asas farão nossos caminhos
entre as estrelas e, da dor libertos,
cantaremos com anjos hallelu Yah.
VULCÃO
Que eu negue a eternidade e sua monotonia
mas que eu me expanda na ex tensão do profano instante
vivendo o efêmero, profundo, quiçá vibrante
(a) qual ter(re)no deus numa glória fugidia.
Que eu me perca ao relevo da densa (geo)grafia
de seu corpo, entre montes e o vale exuberante,
servir-me de esmeraldas qual louco bandeirante
e alimentar a sede, posto que não sacia.
Que eu me sufoque ao me adentrar pela estreita gruta
de sua alma a mostrar a performance de fera
num clima de mira(gens) no mundo da (qui)mera.
Que o seu vulcão exploda exibindo a força bruta,
que eu caia exangue bem ao fundo dessa cratera
mesmo que muito mais amara se gás houvera.
ANJO FÉRTIL
Seu corpo tem ginga de peixe nágua,
contorno tais que não se mede a régua
seu ardor me persegue légua a légua
(per)seguição de que não tenho mágoa.
Seu ardente cio de fogosa égua
apossa de minhalma quando trago-a
ao peito e meu corpo no seu deságua
em (j)atos de prazer e amor sem trégua.
— A divina ira sobrepor, destarte
gozar-lhe a chama em Vênus ou em Marte,
sem cama, sem pecado e até sem brio
qual cachorro vadio o anjo fé(rtil)
a disparar-lhe sempre meu projétil
a saciar-lhe o insaciável cio.
*
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/goias.html
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Página publicada em abril de 2021
Página ampliada em junho de 2017. Ampliadda e republicada em setembro de 2018
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