XÊNIA ANTUNES
A poesia de Brasília não existe sem Xênia Antunes, que também é artista plástica e fotógrafa. O clássico da poesia de Brasília é o poema “Maria a dos prazeres”. Jornalista de uma época importante da cultura de Brasília — diga-se “finais de ditadura”, com os poetas na rua. E Xênia Antunes ali fazendo, registrando. Foi marginal sendo pós-vanguarda. Quem quiser saber quem é Xênia Antunes pode visitar o seu site, mas certamente ela não responderá tudo. Ali estão as suas metáforas, em palavras, arquivos de sua atividade jornalística. Retratos. Artmails.
Apresentação de SALOMÂO SOUSA
Ela diz a Nelson Marins:
“Era para eu ser advogada, mas abandonei a faculdade, e o mundo deve me agradecer esse favor. Acho que tudo começou quando aprendi a ler e a escrever, aos 4 anos de idade. Gostava das letrinhas, eu acho, mesmo que não entendesse nada. E também desenhava, cantava, dançava, representava. Acabei fazendo de tudo um pouco, mas escrever e desenhar era o que mais gostava, até porque não dependia de ninguém e eu gosto de ficar só. Não penso que fiz carreira, apenas continuei escrevendo, pintando, inventado coisas. E o tempo foi passando, muita coisa se perdeu nas andanças e mudanças, outras eu joguei fora, algumas eu desprezo, e vamos ver onde é que essa estrada vai dar.”
Bibliografia: Exercícios de amor e ódio, 1980 (DF).
Página da autora: http://www.xenia.com.br
“Arte Postal” em cartão-postal
Exemplar bibl. de Antonio Miranda
MARIA A DOS PRAZERES
Cada vez que me possuem
cada vez fico mais pura
mais casta
mais virgem
Cada vez que fico nua
cada vez sou mais louvada
beijada
aleluia
Cada vez que eu me entrego
cada vez eu sou mais santa
mais salve
rainha
Cada vez que estou parindo
cada vez sou mais mater
mais ave
maria.
MÃOS
São mãos nos meus cabelos, nos meus olhos, na minha boca são mãos treinadas em percorrer a carne viva
mãos que procuram a parte escondida
são mãos acostumadas, salientes,
que me desenham flores no corpo todo
que me ativam a glândula
são mãos que mentem o gesto
escondem de mim o resto
e, depois das mãos
os pés acima de tudo.
Ai, estão me machucando!
FOLHAS SOLTAS
(Nº 3, 10 de julho de 1988)
- E qual é a vitória de uma gata em teto de zinco quente?
- Apenas permanecer nele o máximo de tempo possível.
(Diálogo entre Paul Newman e Elizabeth Taylor no filme Gata em Teto de Zinco Quente.)
Foi a cor da roupa
o rouge
o batom.
Meu coração ficou nervoso.
Pensei em ligar pra dizer que te amo.
Senti o sangue subir à cabeça
ao pensamento vulgar
e me excitei com um gesto
perfeito e desfeito no ar.
Mordi o lábio
com o dente canino
e o polegar
fulminei no dial.
Liguei pra dizer que te amo
que aguardo
a posta-restante.
Hoje foi um dia
de passar a vau.
A LUA, MAS NÃO A LUA DE LORCA
Havia uma rua
uma mulher nua
uma lua que subia
que descia
que aparecia e desaparecia
que se assanhava e que desistia
que hesitava e por fim se abria
fazia noite, fizesse dia.
No dia do crime da lua
— que se deu de imprevisto por causa do amor –
a rua toda emudeceu suas casas
e a mulher foi julgada
silenciosamente.
NESTE PAÍS
de bananas tropicais
de ouro e prata
café tipo exportação
cigarro que faz o sucesso
e muito rá-tá-tá-tá
neste país
poetas da fome
cinema catástrofe
televisão substituindo o jantar
chuchu milagroso
e outras heranças
tupiniquins
neste país compute-se:
empregada na fila do pão
doente na fila da previdência
inocente na fila da injustiça
dona-de-casa na fila da ilusão
cidadão na fila do trem
da concentração do povo
na fila da liberdade
:todos na fila
e o último da fila a esperar
a democracia
e o primeiro da fila a encontrar o guichê fechado
e o dono da fila a coordenar a fila
fila indiana americana latina polonesa
fila pra receber pagamento
fila pra reclamar aumento
bom comportamento
e muita paciência histórica
pouca complacência
e muita gente histérica
os últimos sempre serão
os primeiros.
fila na semana santa
pra comprar o camarão da indigestão
fila no dia das lágrimas de finados
fila da gasolina em estilo ocidental
fila do hospital
pra ortopedia ginecologia alergia
fila pra desfilar naquele dia
fila pra passar na roleta
paulada na cabeça
de quem sair da fila
façam fila
fila pro natal dos pobres
fila pra habitação
fila da reclassificação
fila pra ver navios
fila da identificação
triagem e porta de camburão
fila pra concurso público
fila da liquidação
passagem pro mundo cão
cão de fila
fila pra concepção
fila pra esquerda
fila pra direita
o centro avante esperto
chutou pra fora do gol
fila pra comer o capim nacional
corpo no necrotério
na fila do buraco no chão
filas
pra todas as taras
todas as insânias
fila pra fazer cocô.
...
na porta do motel
a fila do sexo
imprevisível.
...
um casal
dentro de um alfa romeo
acende dois cigarros minister
e as duas cabeças conjeturam.
ANTOLOGIA DA NOVA POESIA BRASILEIRA . Org. Olga Savary. Rio de Janeiro: Ed. Hipocampo, Fundação Rioarte, 1992. 334 p. ilus Ex. bibl. Antonio Miranda
A R T E F A T O
Eu fico aqui no meu canto
com medo dos homens da polícia
levando uma existência pacífica
numa resistência passiva
civil e desobediente
como deve ser levada
toda vida decente.
Eu fico aqui abrigada
contando os tiros que ainda não levei
pensando na cápsula projetada
que é comparada pela balística
a uma flor se abrindo em ofensa
carregando quinhentos quilos de impacto
na trajetória da sentença.
Página ampliada em setembro de 2020
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