JOSE MAURICIO LOBO BURLE
BURLE, José Mauricio Lobo. Sem folhas soltas. Brasília, DF: Forma e Conteúdo, 2016. 64 p. 18 x 24 cm. “Orelha do livro por Nicolas Behr”. Ilustrações: Levinia Goes. ISBN 978-85-68352-06-9 Ex. bibl. Antonio Miranda
O JARDIM SOBREPOSTO
Há mais de dez anos planto árvores na minha chácara
No início havia um campo rústico com flores esparsas e variadas,
imprevisíveis como o crescimento das árvores baixas que se
emaranham por lá
Um pouco de cada cor para cada dia
Os sábios galhos cascudos do cerrado sempre me disseram:
Não somos tortos: os homens é que são
Na medida em que as árvores foram crescendo e florindo, eu
adubava até o vento e dizia:
Quero mais árvores bizarras, paineiras com crista, chichás
boquiabertos, jaracatiás fazendo polichinelo.
Gameleiras de sovacos peludos frequentados por morcegos,
Mulungus cuja seiva se coagula em forma de garras, vermelhas,
pendendo na ponta de galhos sem folhas
Deixei vingar as mudas que vieram pela boca dos animais
Nessa chácara não entra o arado que tudo revira:
Nunca parti do zero
O zero não se parte
Se o zero, o redondo zero da Terra, se partisse, as coisas
deixariam de conspirar
Hoje, as iraras me descobrem e as raposas me seguem
O lobo-guará emite seu aulido fantasmagórico enquanto trança
suas pernas tímidas no capim alto
Borboletas enlaçam cadarços no ar
Vagalumes deslizam faiscando
Iluminam as rotas das corujas
Mas não dos bacuraus
O bacurau, todos sabem, decola e pousa como folha de poesia
Um movimento quase inefável, que resvala para fora do foco da
existência antes de encontrar um chão
Estou parando de plantar
Resolvi dar um jeito de pendurar um sino
Que, ao soar, vai me lembrar de que depois de um desejo há
sempre o vão, o vazio de um vale
ESTIO
As nuvens se encaixam para tapar o céu, mas, entre elas, a tua espreita
manchada
O fogo coroa o horizonte com um pequeno anel laranja, muito brilhante
A fumaça se levanta com preguiça em espirais inclinadas
A névoa borra a divisa entre o céu e terra
Os morros se sucedem, formando ondas de sombras convexas, em tons
variados e indecisos
O silêncio pousa na copa da mata que esconde as grotas e nas colinas
enluaradas, mais encrespadas do que lisas
O vento está preguiçosa e respira a noite
Os fachos dos faróis tangenciam curvas e se perdem nos vales
A cidade recua para o canto do horizonte
Meu pé está menor que o tênis e balança solto no abismo
Pequeno abismo, daqueles que não dão vertigem e que sustentam os dias
Os insetos, as rãs e as corujas variam seus ritmos, em tons de madeira e
assobio
Espasmódicos ou ciclotímicos,
Usam o som como assoalho e nele navegam com a vela das sombras
Ronca a terra
|
ANTOLOGIA POÉTICA. Sarau Brasil 2016. Concurso Nacional de Novos Poetas. Org. animação e apresentação Isaac Almeida Ramos. Cabedelo, Paraíba: VIVARA Editora Nacional, 2016. (Série Novos
Poetas no. 19. 446 p. ISBN 978-85-920158-2-1
Ex. bibl. Antonio Miranda
A culpa é do poeta
Eu abraço as dores do mundo
Transito entre o céu e o inferno com a indiferença dos que
não pertencem a lugar algum
Quando o vento sopre e parece que as coisas vão mudar,
Eu retiro minha âncora da água olhando para o brilho do metal
Há muitas formas de ser leve na vida
Uma delas é não tentar transformar o destino num código de barras
Decifrar as paisagens não nos redime
Por isso a gentileza na força, a sensibilidade na marca,
A brutalidade se entremeando com a delicadeza num mundo
em que as aparências se coalescem na cebola
Tudo na vida precisa ser carregado nas mãos,
Mesmo que isso importe em trazer toda a culpa do mundo no colo
Se nos colocaram um microfone na cara,
É nosso dever chamar todos par soprar a vela da incerteza
Por mais que eu advirta as pessoas de que não tenho destino
É a mim que elas culparão quando o vento parar
*
VEJA e LEIA outros poetas do DISTRITO FEDERAL em nosso Portal:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/distrito_federal.html
Página ampliada e republicada em dezembro de 2021
Página publicada em abril de 2019
|