FABRIZIO MORELO
MORELO, Fabrízio. Tediário. Brasília: 2011. 60 p. 13x14 cm. Edição do autor, impresso pela Sítio Gráfica e Editora. Foto do autor na orelha, por Sérgio Amaral.
Col. A.M. (EA)
légua longa
não faço
nunca fiz
a procura do inteiro
não desprezo o pedaço
se o que chega primeiro
é só morte ou cansaço
sempre resta em sobejo
pro defunto a cachaça
para o gado o bagaço
sobra um verso
amassado no maço
dos poemas que nunca fiz
que fala dos tortos canteiros
onde o tropeço é um passo
que foi de encontro à raiz
vida inteira
(agorinha)
não corro
não mato
porque a vida
no seu fino trato
a meu juízo
ou mero fato
por desaforo
por desacato
não vale a bala
nem paga a sola do sapato
de tão vadio, virei poeta
cheguei tardio
cria indireta
dos que tem frio
do que não presta
do canto vento
desse assobio
que vem da fresta
nem bem pacato
nem bem pateta
só tenho e trago
o que me afeta
a légua longa
esse caminho
que, de tão deserto e estreitinho,
só me atravessa
por ser sozinho
alice
alice me alarde
alice me alente
alice me aguarde
o tanto que aguente
o amor esquece
verto e choro sempre que insisto
e tenho tratado a morte
com uma falta de libido
que chega a soar indecente
quase esquisito
como o poema eleito
que barganhou pra ser escrito
mas na hora do aperto
tem o apelo da prece
e se lembrar
recito
já que o amor esquece
como é bonito no começo:
uma emoção, ou quanto apreço
uma amplidão
mas tanta loucura tem seu preço
paixão define quem padece
e toda alegria tem avesso
MORELO, Fabrizio. Este. Brasília, DF: Edição do Autor, 2013. 80 p. 14x20,5 cm. Design, capa e ilustrações: Ribamar Fonseca. Ex. bibl. Antonio Miranda
berro
Não que eu não queira,
mas porque não quero.
Tem coisa que só é bem dita
no berro.
Meus mortos eu mesmo velo,
seus corpos eu mesmo enterro.
Sirvo café e cachaça.
Ladainha, cumprimento
e companhia,
por ocasião, tolero.
Mas não discurso.
Se é pra me despedir não falo:
bebo e berro.
Contramão
Pouco se me dá
que sentido havia.
O tédio largo,
a garrafa seca,
a fumaça crespa,
o último cigarro.
Fiz tanta bobagem na vida.
Dessas ordinárias,
distantes,
doridas,
dopadas.
Se fosse só pobreza,
mas bem sou tão pobre.
Sou é de outro barro,
rico de outro cobre,
livre da avareza
que a riqueza encobre.
isso mesmo
Ainda que seu seja isso mesmo,
me preste ao desprezo,
ao corrente, ao igual.
Ainda que seja ordinária
essa indumentária,
esse farsa moral.
Ainda que eu negue o cansaço,
o nariz de palhaço,
essa cara de pau.
Ainda que ao fundo do poço
me atirem sal grosso
e toneladas de cal.
Ainda que eu negue a canalha,
guardo na genitália
o venéreo, o venal.
Se é dia de carne ou de osso,
se resolvo ou só torço,
dá no mesmo, é igual.
O dia do meu recomeço,
se virá, desconheço,
se vier não faz mal.
poema sem título
de ontem pra hoje
a diferença é tanta
que nem cabe
no que se descobre
antes da janta
quando ainda
ninguém sabe
se a fome
só é fome
antes que acabe.
palíndromos
para Renato Matos
Escrever do mesmo jeito
de trás pra frente
é quase igual
a diferente.
1ª. BIENAL DO B – A POESIA NA RUA. 26 a 28 de Setembro de 2012. Brasília: Açougue Cultural T-Bone, 2011. 154 p. ilus. col. 17x25 cm.
caos
o caos atado
no silêncio santo
a mão trançada
numa reza tanta
o sagrado impávido
o recurso pouco
o peso arreio
de um mistério oco
rima se faz com dicionário
métrica se conta
forma se aproveita
o caminho do prelo
é que o dito se ajeita
se se
se a gente se cruza
a gente se espanca
e se se cruza
a mágoa é tanta
que mesmo ali
toda a gente
se espanta
deu vontade de dizer:
vá cuidar da sua vida
mas o despropósito
o encanto
é fazer de conta
que todo santo dia
é de santo
Do livro Tediário, lançado na Bienal do B, a Poesia
na rua, na 312 Norte, Brasília, agosto de 2011.
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Página ampliada em maio de 2023
Página publicada em fevereiro de 2012; ampliada em novembro de 2016. Página ampliada em novembro de 2020
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