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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RUY ESPINHEIRA FILHO

 

É um dos grandes poetas brasileiros da atualidade, autor de uma obra vasta e valiosa que começou na década de 60 (em antologias) e se renova constantemente e mantém o melhor de nossa poesia.

Ganhador dos prêmios Cruz e Sousa (1981), Ribeiro Couto (1997). Academia Brasileira de Letras (2006), Jabuti – 2º lugar (2006). Há ainda  o Prêmio Rio de literatura (romance, 1985, 2º lugar).

Trata-se de uma obra que deveria figura como referência obrigatória ao se falar do que há de melhor na poesia contemporânea brasileira. Cláudio Willer

Poesia concentrada e de sutil expressão”.   CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, sobre o primeiro livro de Ruy Espinheira Filho, Heléboro (1974).

 

See also: TEXTS IN PORTUGUESE AND ENGLISH

Veja a resenha do livro:
RUY ESPINEIRA FILHO: PAIXÃO E PRAZER DA POESIA por Florisvaldo Mattos – por Florisvaldo Mattos


 

Ver E-book:  https://issuu.com/antoniomiranda/docs/ruy_espinheira_filho 

 

ESPINHEIRA FILHO,  RuyBabilônia & outros poemas. São Paulo: Patuá, 2017.  140 p.   Editor Eduardo Lacerda.  Ilustração, capa, projeto gráfico: Leonardo Mathias. ISBN  978-85-8297-375-2  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

BABILÔNIA

 

 

Ontem não vi você em Babilônia
Num fragmento de argila, em escrita cuneiforme,
cerca de 3.000 anos a.C.

 

 

Ao saber da notícia, revivi
aquela noite funda em que escrevi
(afogava-me um pântano de insónia):

 

Ontem não vi você em Babilônia.

 

Só o que restou de tudo: um fragmento

de tabuinha que escapou do vento

do Tempo. Sob o pó, pulsando, a insônia:

 

Ontem não vi você em Babilônia.

 

Foi a última vez que lhe escrevi

e nenhuma resposta recebi.

Ainda respiro o que chorei na insônia:

 

Ontem não vi você em Babilônia.

 

Os arqueólogos me decifraram
e, milênios além, se emocionaram,
por ser só amor e dor a voz da insônia:

 

Ontem não vi você em Babilônia.

 

Era o bastante. O Tempo na tabuinha
quase tudo apagou da história minha,
porém deixou o essencial da insônia:

 

Ontem não vi você em Babilônia.

 

E assim contam-se vida e seus escombros
que um dia se partiram nos meus ombros.
E na alma, desde então, só noite e insônia:

 

 

Ontem não vi você em Babilônia.

 

 

 

 

SONETO DE TONS

PARA COMPOSIÇÃO DE POEMAS

 

Um sorriso doendo nos sentidos.
Um bilhete de amor entregue ao vento.
A janela de vidros coloridos
deslumbrando a manhã e o pensamento.

 

Casuarinas de galhos estendidos
sobre um tempo sereno, lento, lento...
E janeiros de sonhos refloridos
erguendo-se do campo sonolento.

 

O coral no coreto. Noite ardente,
toda a cidade imenso vagalume.
No coração um cintilante alento.

 

Esperanças na rosa do Nascente.

E esse sorriso. E os olhos. E o perfume.

E um bilhete de amor entregue ao vento... 

 

 

ESPINHEIRA FILHO, RuyNesta tarde meiga de julho.  Janoaatão, PE: Editora Guararapes EGM, 2015.  32 p. ilus. col. Editor Edson Guedes de Moraes. Ex. bibl. Antonio Miranda

 

ESPINHEIRA FILHO, Ruy.  Milênio e outros poemas.   São Paulo: Editora Patuá, 2016.  ISBN 978-85-8297-280-9  Editor: Eduardo Lacerda.   Ilustração, projeto gráfico e diagramação: Leonardo Mathias. 148 p.  14x21 cm.  “ Ruy Espinheira Filho “  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

          HÁLITOS

          Desperto ao último
          hálito da noite
          que observo nos coqueiros lânguidos,
          nos tímidos galhos da romanzeira,
          nas nuvens já quase sem memória
          das sombras.

          Último hálito da noite,
          desta que está acabando
          de passar.

          Sereno hálito, como espero que seja
          o meu último
          quando chegar a noite que jamais
          passará.

 

          BREVE CANÇÃO DA CAMINHADA

          Vamos todos caminhando,
          entre o amor e a morte,
          por sobre o fio da navalha,
          sem sul, leste, oeste ou norte.

          E vamos, da luz da infância,
          até a alma anoitecida,
          buscando um sentido no
          nenhum sentido da vida.

          Que mais fazer? Ah, brindar,
          entre o que tarda e o de súbito,
          às vitórias sobrea morte,
          até o último decúbito.

 

          BREVE CANÇÃO DAS PARTIDAS ETERNAS

          Transatlânticos ou canoa
          furada? Nem bem, nem mal,
          que ir até a nado serve
          como saída final.

          Mas isso é esforço demais.
          Basta só um suspiro fundo.
          E há até quem nem feche os olhos
          num último adeus ao mundo.

          No mais, como não há queixas,
          nunca, depois da partida,
          todos chegam muito bem
          ao outro lado da vida...

 

ESPINHEIRA FILHO, RuyNesta tarde meiga de julho.  Jaboatão, PE: Editora Guararapes EGM, 2015.  32 p. ilus. col. Editor Edson Guedes de Moraes. “Ruy Espinheira Filho” Ex. bibl. Antonio Miranda https://issuu.com/antoniomiranda/docs/ruy_espinheira_filho

ESPINHEIRA FILHO, RuyNoite alta e outros poemas.  São Paulo: Editora Patuá, 2015.   ISBN 978-85-8297-213-7   Projeto gráfico e capa: Nathan Matos.  Imagem da capa: Evandro Alves Maciel. Editor: Eduardo Lacerda.   96 p.  15,5x22,5 cm.  “ Ruy Espinheira Filho “  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

          CANÇÃO DE UM CONTO

          Tuas mãos pequeninas,
          como as mãos das fadas,
          fizeram suaves
          minhas madrugadas.
          Teus joelhos ao sol,
          como duas luas
          acendendo mais
          tuas coxas nuas,
          tanto enluararam
          o meu abandono
          que as noites ficaram
          desertas de sono.
          Teus olhos profundos
          em que mergulhei
          eram labirintos
          não mais me encontrei.
          E tudo isso foi.
          E hoje é um conto, enfim,
          que saiu do Tempo
          e se conta em mim.
          Como outros, tantos,
          histórias da história
          da minha incessante
          maré da memória.

 

 CANÇÃO DO CLARO MUNDO

Havia um pássaro preto,
um periquito, um sofrê
e outros seres avoantes
que agora pouco se vê
— como o curió, o tiê-sangue,
a perdiz, a guriatã
que habitavam nossa vida
desde raiada a manhã.

Um papagaio fardado
de Bandeira Nacional
andava por toda a casa
com pose de Cardeal,
sem ligar para ninguém
— pessoas, cachorros, gatos —
e enfático sermoneava
um latinório nos matos.

Havia banhos de chuva
nas beiradas do telhado,
urubus e gaviões,
e algum tatu desgarrado.
Havia filtro de barro
para a água de barril
e muitas saúvas vorazes
que iam comer o Brasil.

E havia um amplo quintal
com vasto tamarindeiro,
besouros, sapos, preás,
sonoroso galinheiro.
Havia um pudor de lembrar
as crueldades dos homens,
muito mais assustadores
que os uivantes lobisomens.

Havia ainda o Romãozinho,
que às vezes, na madrugada,
vinha por ordem na casa
deixada desarrumada.
“Foi Romãozinho” —diziam,
sorrindo. Mas, se ajudava,
sendo um diabo-criança,
às vezes se endiabrava,

perturbando o galinheiro
e outros animais,
apedrejando o telhado
e mais façanhas tais;
mas os bichos se aquietavam
e nunca foi encontrada
nem a sombra de uma pedra
sobre as telhas atirada.

(Não sei quando foi-se embora
o Diabinho do Lar;
busco notícias, mas dele
nunca mais ouvi falar.)
Havia a avó que acordava,
mesmo na época fria,
e saía à porta para
levar seu bom-dia ao dia

(contava que frio fazia
era mesmo em sua terra
da Itália, de onde partira
no início da Grande Guerra).
Havia o pai trabalhando
na máquina de escrever,
ou sentado na poltrona,
longamente a ler, a ler...

 

Havia um jardim. E a mãe
conversando com as flores
para que se abrissem mais
alegres em suas cores.
Sim, havia um claro mundo
que pareci sem fim.
Como é. E seguirá sendo
até a noite de mim.

 

ESPINHEIRA FILHO, RuyViagem & outros poemas.   Salvador: P55 edições, 2011.  28 p.   (Coleção Cartas Bahianas)  formato 10x19 cm.  Isbn 85-89655-76-8  Col. A.M. (EA)

 

APOLO

Não nos surgiste como aos argonautas
quando
fizeste tremer a ilha
sob teus passos
e então te ergueste estendendo nas nuvens
os cabelos de ouro.
Mas senti que estavas
por todo o dia
acompanhando-nos na visita
às formas magníficas
que há milênios foram erguidas
nas alturas
em teu louvor.

Obrigado.
Embora não tenhamos te ofertado presentes,
como Midas, rei da Frigia,
que te enviou seu trono real,
ou Giges, da Lidia,
antepassado de Creso,
que te saudou com crateras de ouro
e incontáveis ex-votos
de ouro e prata,
nunca mais seremos os mesmos,
pois que respiramos a fímbria a brisa
tocada pelo hálito de teus solenes ciprestes
de folhas verdes
pedras
e unção.

 

                              Delfos, outubro de 2010. 

 

 

De
ESPINHEIRA FILHO, Ruy.
Livro de canções e inéditos. 
Salvador: P55 Edições, 2011.   48 p. (Cartas Bahianas) 
ISBN  978-85-89655-65-1.  Formato 10x19 cm.  A capa com uma orelha que se encaixa num corte da sobrecapa, formando uma espécie de envelope, a sugerir a ideia das “Cartas Bahianas”.
   Col. A.M. (EA) 

 

Canção matinal

 

                        a Ricardo Vieira Lima

 

Acorda bem cedo o homem

da casa de telha-vã

e abre janela e porta

como se abrisse a manhã.

 

E eis que a vida não é mate

nem triste, nem só, nem vã.

É doce: cheira a goiaba

e brilha como romã

 

orvalhada. E ele caminha,

o homem, com passos de lã

para em nada perturbar

a quietude da manhã.

 

Já não há mágoas de perdas

nem angústias de amanhã,

pois a alma que há na calma

entre a goiaba e a romã

 

é a própria alma do homem

da casa de telha-vã,

que declara a noite morta

e acende em si a manhã.

 

Rui Espinheira Filho

De
Rui Espinheira Filho
SOB O CÉU DE SAMARCANDA
Poemas
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
Fundação Biblioteca Nacional, 2009.
240 p.   ISBN  978-85-286-1413-8


Ruy Espinheira Filho surge em novo livro para a alegria de seus admiradores. Mantêm-se firme no lirismo, sem assumir modismos que se apresentam como temporada passageira, no cenário de nossa poesia. O caminho dele é seguro.  Faz das reminiscências e fantasias, nos limites imaginários de Samarcanda, um território fluído, sem afetações, no auge de sua maturidade criativa.  Faz tributo queixoso ao João Cabral de Melo Neto, cujo  estilo antecipava o minimalismo e o lirismo enxuto mas espesso que Ruy confessa e contesta "Desconforta-me o poeta/ escrever em tom avesso à vida", Ruy o poeta da vida e de seu avesso.   Antonio Miranda



SONETO NOTURNO

Penso na noite como um rio profundo

e lembro coisas deste  e de outro mundo.
Outros mundos, aliás, que a vida é vasta
como diversa. E mesmo assim não basta,

o que nos faz tecer ainda outras vidas
nas nuvens da alma, e que nos são vividas
com tanta força quanto as outras mais,
em seus sonhos de agora e de jamais

(ou melhor: com mais força, pois que estamos
ainda mais vivos no que nos sonhamos).
Penso na noite como um mar sem fim

quebrando sombras sobre o cais de mim.
E , enfim, sem esperanças e sem prece,
pressinto a noite que não amanhece.

 

OS MORTOS

Há uma luz suave em que eles respiram.
Não mudaram nada e fingem não ver
como sou mais moço nas fotografias.

Contam histórias, sempre, mesmo quando em silêncio
(e tanto quanto se contam, contam-me também de mim).
Não mais precisam beber, só se refletem no copo

que ergo e em que bebo, por eles e por mim,
trespassado ainda dos sonhos que compunham a alma
de que se iluminava o moço nas fotografias.

 

Veja a resenha do livro:
RUY ESPINEIRA FILHO: PAIXÃO E PRAZER DA POESIA por Florisvaldo Mattos – por Florisvaldo Mattos

 

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VESTIDOS

 

Dos vossos vestidos brancos

é que me nascia o dia

aos domingos, e a alma nítida

de uma inquieta alegria.

 

Dos vossos vestidos brancos

vinha uma luz que esplendia

e desfazia o que era

sombra da noite vazia.

 

(Ou pior: noite habitada

de ânsias, melancolia,

desejos da carne, assombros,

e outros charcos de agonia.)

 

Em vossos vestidos brancos

fremia uma melodia

de anjos de tranças brandas

em que meu tremor vivia.

 

Dos vossos vestidos brancos

me vem o que, neste dia,

aquece o que ainda me resta

de escombros de poesia.

 

 

CIRCO

Raia o sol, suspende a lua,

o palhaço está na rua.

 

Tremula a lona da praça,

tempos de assombro e de graça.

 

Ah, que gente tão risonha

nessa cidade que sonha

 

tigres, grifos, leões de oiro

e mulheres em vôo loiro,

 

vindas de rússias e franças

- e acima das esperanças...

 

Nunca além de uma semana

permanece essa profana

 

prova de que Deus existe

e nem sempre a vida é triste.

 

Baixa o sol, se esconde a lua,

não há mais nada na rua,

 

caminho de pó e vento,

formigas, cão sonolento...

 

Porém já nada é tristonho,

 

- infenso a tempo e distância –

a nos sonhar essa infância.

 

 

SONETO DO ANJO DE MAIO

 

Então, em maio, um Anjo incendiou-me.

Em seu olhar azul havia um dia

claro como os da infância. E a alegria

entrou em mim e em sua luz tomou-me

 

o coração. Depois, suave, guiou-me

para mim mesmo, para o que morria,

em meu peito, de olvido. E a noite, fria,

fez-se cálida – e mágoa desertou-me.

 

Já não eram as cinzas sobre o Nada,

mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,

e montes, e horizontes sem ter fim!

 

Era a vida de volta, resgatada,

e nova, e para sempre, pelas chamas

desse Anjo de maio que arde em mim!

 

 

Extraídos do livro A Cidade e os Sonhos / Livro de Sonetos. Salvador, Bahia: Edições Cidade da Bahia, 2003. 115 p. ilus.



DESCOBERTA

 

Só depois percebemos

o mais azul do azul,

olhando, ao fim da tarde,

as cinzas do céu extinto.

 

Só depois é que amamos

a quem tanto amávamos;

e o braço se estende, e a mão

aperta dedos de ar.

 

Só depois aprendemos

a trilhar o labirinto,

mas como acordar os passos

nos pés há muito dormidos?

 

Só depois é que sabemos

lidar com o que lidávamos.

E meditamos sobe esta

inútil descoberta

 

enquanto, lentamente,

da cumeeira carcomida

desce uma poeira fina

e nos sufoca.

 

                        (Heléboro, 1974)

 

 

ESPINHEIRA FILHO, Ruy.  Julgado do vento. Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.  87 p. (Coleção Poesia Hoje, vol. 31).  14x21 cm.  Capa Eugênio Hirsch.  “ Ruy Espinheira Filho “ Ex. Biblioteca Nacional de Brasília.

 

RAPTO

Abriram a janela
alta e o dia
penetrou na sala.

O transfigurado
menino diante
da revelação.

Soprando nas telhas
um vento que gira
sóis e estrelas

carrega o menino
através do límpido
retângulo de luz

ao cerne do dia.
Mas que dia? Tudo
é outra coisa, e fria.

E o menino vê
que o que o ilumina
e aquece não

se encontra lá fora
— mas sepulto no
pó da casa morta.

 

 

O ROSTO DA CHUVA

 

Esse rosto na chuva

te olha.

É uma chuva longa, uma

de muitos anos e viagens

correndo por esse rosto.

 

Densa como sangue, chove.

No rosto, outros rostos

cintilam,

gotas esparsas.

Assim casas, cidades, nomes,

Animais,

marés do peito abismo.

 

Esse rosto na chuva

te reflete

com o que a vinda,

vida,

te doou e às vezes inscreveu

tão fundo que lá não desces.

 

Esse rosto

na chuva que circula

em tuas veias

te punge com mil irresgatáveis

e

áspero cresce

sob a pele suave do teu rosto. 

 

            (Julgado do Vento, 1979)

 

 

POEMA DE NOVEMBRO

 

O difícil é agüentar até que a morte chegue.

Suportar, por exemplo, a memória do teu corpo

e aquela noite (era maio) sob

o branco incêndio da lua.

 

E tanto mais, tanto mais.

                                  Uma vida não dá

para contar

uma vida.

               E toda uma

às vezes

se consome

numa carícia entre lençóis.

 

O difícil é agüentar até que a morte

                   chegue.

                                A morte

                   que mata todas as mortes,

                                                        sepulta

                   para sempre

                   todos os mortos. Como

                   este cadáver de amor

                                                   que me perfuma.

 

 

                            (A Canção de Beatriz, 1990)

 

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De

MORTE SECRETA E POESIA ANTERIOR

Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984

 

 

O AVÔ

 

1

 

O avô descansa

de quase um século.

O rosto é sereno

(não sei como pode

mostrar essa calma

após tanto tempo)

e as mãos despediram

todos os gestos.

 

O avô entre rosas

com seu terno escuro.

Pela primeira vez

indiferente.

Pela primeira vez

desatencioso

com mulher, filhos, netos,

conhecidos, o mundo.

 

Nem que implorássemos

nos recontaria

as tantas lembranças

entre farrapos de ópera.

Descansa tão fundo e

alto que é impossível

despertá-lo, saber

mesmo onde repousa.

No entanto está em nós

e nos impõe seus traços,

cor de olhos, jeito

de andar, sorrir, falar.

 

E o mais difícil de

cumprir:

         a insuavizável

dignidade.

 

 

2

 

Avô, já nos retiramos.

Em silêncio vamos descendo

a ladeira. Pó do teu pó,

flutuaremos até

que o vento contenha o sopro.

 

E então te herdaremos

também essa paz final.

Absoluta. Tão perfeita

que nem a saberemos.

 

 

 

DIA DE FINADOS

 

Tantos são os abandonados

e caminham ásperos no silêncio.

Há os que rezam, os que choram, os que se mantêm

                                      impenetráveis.

 

E todos depois retornam às casas, aos pequenos

mitos auxiliares de cada dia

sob o indiferente azul do céu.

 

As flores depositadas sobre as sepulturas

absolvem os mortos.

 

 

De

Ruy Espinheira Filho
ELEGIA DE AGOSTO
e outros poemas

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.   
272 p.  ISBN 85-386-1124-8

 

 

ESTE DIA

 

Chegar, assim, a um dia

como este, quem diria?

 

Ninguém, que não poderia

alguém saber deste dia.

 

Nem eu, que me prometia

varandas de calmaria

 

se a uma hora tardia

da vida chegasse um dia.

 

No entanto, eis-me neste dia,

o qual jamais urdiria

 

nem em pesadelos; dia

ardendo contra a alegria,

 

a paz, o amor, a poesia,

o corpo, a esperança; dia

 

como nenhum: pedraria

fulgurante de agonia.

 

 

A FALTA

 

Falta alguma coisa-

Falta desde sempre.

 

Desde que me sinto.

Mesmo nos Natais,

 

quando havia tudo

— árvore, presentes,

 

luzes, cantos, risos,

a família cálida —

 

de súbito abria-se,

no intimo, a falta,

 

sem nome, sem rosto,

sem história, só

 

presença de ausência-

Tanto interroguei-me

 

o que me faltava.
Nada respondia.

apenas estava,

mesmo nas diamâncias

 

do amor, como em tudo

na adolescência,

 

na idade madura,

nos sinais primeiros

 

de desesperança

no sonho e na carne.

 

Como agora esta,

fiel como a sombra

 

que jamais permite

seja ignorada

 

minha opacidade.

De tudo o que tive

 

e tenho, talvez

só haja possuído

 

mesmo esta fala,

que há de ficar

 

presente e pungindo

até que eu transponha

 

o último limiar,

quando então, por fim,

 

nada faltará.

 

 

De
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. 
As Sombras luminosas.
 Florianópolis: Fundação Catarinense de        Cultura, 1981. 

68 p.  “Prêmio Cruz e Sousa – Concurso Nacional de Poesia – 1º      lugar”.

 

 

A INELUTÁVEL CANÇÃO

 

Há pouco chovia

e nato chove mais.

Há pouco sorria,

na lua do espelho,

teu corpo; centelha

deflagrando anjos

que a tarde soprava

por sobre os quintais.

 

Há pouco esplendia

ao sol o regato.

Esplendia e ia

entre os nossos sonhos,

pelos nossos corpos,

atiçando mais

a flama dos sexos

em flor nos quintais.

 

Há pouco era dia

— e já não é mais!

Faz escuro e ouvimos

um silêncio fundo.

Um silêncio podre

que sobe de nós

— e das sombras dos

extintos quintais.

 

 

VEJA O E-BOOK DO POEMA:https://issuu.com/antoniomiranda/docs/ruy_espinheira_filho_064ed45897a6a0

ESPINHEIRA FILHO, RuyDeserto. Jaboatão, PE: Editora Guararapes EGM, 2015.  18 p.          ilus. col. Edição limitada, Editor: Edson Guedes de Moraes. 

 

 

ESPINHEIRA FILHO, RuyRomance do sapo seco:  uma história de assombros.   Salvador, Bahia: Edições Cidade da Bahia, 2005.   32 p.  ilus.  13X17,5 cm.  Cordel.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

(fragmento)

        

         SANTOS do nome e do céu.
         E que mais santos houvesse,
         pois o que vinha era coisa
         de demandar muita prece.       

         É que o homem dos arcanos,
         medição em medição,
         ia juntando às suas terras
         outros pedaços de chão.

         Aos que ousavam discordar,
         mesmo em extremo de calma,
         retaliava com pragas
         de tornar em cinzas a alma.

         Aos teimosos, prometia
         que sobre sua criação
         faria chover doenças
         e chamas na plantação.

         E acontecia: animais
         de cascos, patas e asas
         morriam. E vinha o fogo
         até o terreiro das casas.

         ASSIM, melhor acatar
         essa nova medição
         que perder tudo ou baixar
         a sete palmos do chão.

         E eis que o Tinhoso se ia
         crescendo em terra, riqueza,
         cintilando mais e mais
         uma sinistra lordeza.

         As terras de Generino
         já tinham perdido um lanho
         para a medição do homem.
         E um lanho de bom tamanho.

         Mas eis, então, que o Capeta
         achou que era esse lanho
         muito pouco — e mediu mais,
         lanho de amplo tamanho,

         que tirava o que existia
         de melhor na plantação
         e o que ali acontecesse
         desgarrar da criação.

         (...)

 

 

VOZES DE AÇO. XXII  Antologia poética de diversos autores.  Homenagem ao poeta  Ruy Espinheira Filho.  Org. Jean Carlos Gomes.    Apresentação:  Antonio Carlos Secchin, Anderson Braga Horta, Álvaro Alves de Faria, Antonio Olveira Pena, Antonio Torres
e Ricardo Vieira Lima.   Volta Redonda, RJ: Gráfica Drumond, 2020.   94 p.   15 x 21 cm.   Ex. bibl. Antonio Miranda

 

"Ruy Espinheira é um grande poeta, cuja obra tenho o prazer de acompanhar há décadas. Tanto no manejo de formas fixas, quanto
na utilização do verso livre, percebe-se a mesma extraordinária
vocação lírica do autor, que, como poucos, alia qualidade a comunicabilidade."  ANTONIO CARLOS SECCHIN

 

 

        SONETO DA NEGRA

              a Maria da Paixão

A cor da suavidade é que a modula.
Nela se abisma a luz e se revela
incapaz de alterar nada daquela
penumbra que a atrai, absorve, anula.

Nessa paisagem que coleia, ondula
como um rio, ou o mar (e é dela e ela),
um vento violento me desvela
um animal que me trucida e ulula.

O tom da suavidade não se altera,
eleva um canto cálido e me diz
que são garras de amor, e é bela e fera.

E assim, em carne rubra e cicatriz,
entrego à cor profunda que me espera
estes despojos em que sou feliz.

 


ENQUANTO

Um dia recordarei
que aqui estive, assim, à brisa
de janeiro, folhas verdes
acenando sobre o muro,
céu azul, silêncio,
como
lembro a tarde em que cruzaste
o leito seco do rio,
as tranças ruivas e longas,
os seios ainda dormindo
na blusa
e além: infância.

Um dia recordarei
esta hora, estas palavras
que se escrevem leves como
a brisa, e com ela passam
para o jardim em que lembra
a minha alma
enquanto
tarda o tempo de esquecer.

 

 

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TEXTOS EN ESPAÑOL

 

 

Extraídos de

ANTOLOGÍA DE LA POESÍA BRASILEÑA

Santiago de Compostela, Ed. Laiovento, 2001

ISBN  84 8487 001 4

 

 

DESCUBRIMIENTO

 

Sólo después divisamos

lo más azul del azul,

mirando, al final de la tarde,

las cenizas del cielo extinto.

 

Sólo después amamos

a quién amábamos;

y se extiende el brazo, y la mano

aprieta dedos de aire.

 

Sólo después aprendemos

a pisar el laberinto;

pero ¿cómo recordar los pasos

en los pies hace mucho dormidos?

 

Sólo después sabemos

lidar con lo que lidábamos.

Y meditamos sobre este

inútil descubrimiento

 

mientras tanto, lentamente,

del tejado carcomido

desciende un polvo fino

y nos sofoca. 

 

                        (Heléboro, 1974)

 

 

EL ROSTRO EN LA LLUVIA

 

Ese rostro en la lluvia

te mira.

Es una lluvia continua, uma

de muchos años y viajes

corriendo por ese rostro.

 

Densa como sangre, llueve.

Em el rostro, otros rostros

resplandecen,

gotas dispersas.

Así casas, ciudades, nombres,

animales,

mareeas del pecho abismo.

 

Ese rostro en la lluvia

te refleja

com lo que la venida,

vida,

te dono y a veces inscribió

tan hondo que allá no descendies.

 

Ese rostro

en la lluvia que circula

por tus venas

te punge con mil incumplimientos

áspero crece

bajo la piel suave de tu rostro. 

 

            (Julgado do Vento, 1979)

 

 

POEMA DE NOVIEMBRE

 

Lo difícil es aguantar hasta que la muerte llegue.

Soportar, por ejemplo, el recuerdo de tu cuerpo

y aquella noche (era en mayo) bajo

el blanco incendio de la luna.

 

Y tanto más, tanto más.

                                  Una vida no da

para contar

se consume

en una caricia entre sábanas.

 

Lo difícil es aguantar hasta que la muerte

llegue.

                   La muerte

que mata todos los muertos,

                                         sepulta

para siempre

todos los muertos.  Como

este cadáver de amor

                                      que me perfuma. 

 

         (A Canção de Beatriz, 1990)

 


ESPINHEIRA FILHO, RuyEstação infinita e outras estações.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.  587 p.  15,5x23 cm.  Capa: Raul Fernandes. Imagem de capa:  Michael Nelson.  ISBN  978-85-286-1631-6  Col. A.M. 

 

CANÇÃO DAS CïNZAS DA TARDE

 

As cinzas da tarde descem

sobre o horizonte que arde

em agonia, e o que tecem

vem das cinzas de outra tarde.

 

Lembras-te, amor? Não te lembras.

És esquecimento e calma.

E entre as coisas que deslembras

está o que eu chamava alma

 

em mim, e que hoje também

se esquece de si, cansada

de se sonhar e ninguém

sonhar do seu sonho. Nada

 

foi colhido dessa hora

senão o vê-la passar.

Olho estas cinzas de agora

apagando as luzes do ar

 

— eu, aqui, sem quem me guarde

de ressentir sempre, assim,

quando agoniza uma tarde,

esta história que, enfim,

 

jaz nas cinzas de outra tarde

(de outra tarde — c de mim).

 

 

[ ESPINHEIRA FILHO, RuyCANÇÕES DE DEPOIS DE TANTO.  CD com música de Carlos Barral e outros mjúsicos e letras de poetas baianos: Ruy Espinheira Filho entre eles. Inclui CD e folheto com as letras das música.  12x12 cm.  Col. A.M. 

 

TEXTS IN PORTUGUESE AND ENGLISH

 

AUTORES BAIANOS: UM PANORAMA; BAHIANISCHE AUOTEREN: EIN PANORAMA; BAHIAN AUTHORS: A PANORAMA; AUTORES BAHIANOS: UN PANOROMA.   Organização Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB).  Salvador, Bahia: P55 Edições, 2013.  471 p + 10 p. s/ com as biografias dos autores nas quatro línguas.   p.  18x25 cm.  Inclui textos dos poetas Antonio Risério, Daniela Galdino, Florisvaldo Mattos, Karina Rabinovitz, Kátia Borges, Luis Antonio Cajazeira Ramos, Myriam Fraga, Roberval Pereyr e Ruy Espinheira Filho e traduções ao alemão, inglês e espanhol.  Col. A.M. 

 

 

MARINHA

 

("Heleboro", 1974)

 

 

Meus olhos testemunham

a invisibilidade das ondinas,

a lenta morte dos arrecifes

e os canhões de Amaralina.

 

Vou, a passo gnominado,

pisando a areia fina

da praia.

                Pombas sobrevoam

os canhões de Amaralina.

 

Parece a vida estar completa

na paz que o azul ensina.

A brisa ilude a vigilância

dos canhões de Amaralina.

 

Nem tua ausência, amor, perturba

esta alegria matutina

onde só há o claro e o suave...

(E os canhões de Amaralina?).

 

Tudo esta certo: mar, coqueiros,

aquela nuvem pequenina...

Mas - o que querem na paisagem

os canhões de Amaralina?

 

SEASCAPE

 

("Heleboro", 1974)

 

 

My eyes witness

the invisibility of the undines,

the slow death of the reefs

and the cannons of Amaralina.

 

I go, at a sententious pace,

treading the fine sand

of the beach.

                    Doves fly over

the cannons of Amaralina.

 

Life seems to be complete

in the peace the blue teaches.

The breeze eludes the vigilance

of the cannons of Amaralina.

 

Not even your absence, love, disturbs

this morning joy

where there is nothing but the bright and the smooth

(And the cannons of Amaralina?).

 

Everything is right: sea, palm trees,

that tiny cloud ...

But - what do they want in the landscape,

the cannons of Amaralina?

 

 

 

DESCOBERTA

 

("Heleboro", 1974)

 

So depois percebemos

o mais azul do azul,

olhando, ao fim da tarde,

as cinzas do céu extinto.

 

Só depois é que amamos

a quem tanto amávamos;

e o braço se estende, e a mão

aperta dedos de ar.

 

Só depois aprendemos

a trilhar o labirinto;

mas como acordar os passos

nos pés há muito dormidos?

 

Só depois é que sabemos

lidar com o que lidávamos.

E meditamos sobre esta

inútil descoberta

 

enquanto, lentamente,

da cumeeira carcomida

desce uma poeira fina

e nos sufoca.

 

DISCOVERY

 

("Heleboro", 1974)

 

 

Only later do we realize

the bluest of blue,

gazing, in the evening,

at the ashes of the extinguished sky.

 

Only then do we love

those whom we so greatly loved;

and the arm reaches out, and the hand

presses fingers of air.

 

Only then do we learn

to walk the labyrinth;

but how to awaken the steps

in feet long dormant?

 

Only then can we

deal with what we dealt with.

And we meditate on this

useless discovery

 

while, slowly,

a fine dust falls

from the worm-eaten coping

and we suffocate.

 

 

ELEGIA

 

Clulgado do vento", 1979)

 

 

Não abram esta janela.

Não afastem estas cortinas.

Nesta sala os amigos mortos

estão bebendo a sua cerveja.

 

Uma voz há muito perdida

(só os meus ouvidos a ouvem)

chama do fundo da infância

e eu me sinto sangrar.

 

Pousa uma garoa antiga

nos meus cabelos, e brilha.

A criança brinca com um martelo

que cai sobre o meu coração.

 

Tanta coisa silenciada!

O olhar, turvo, passeia

pelo quintal, onde só há

a infância alheia

                         e o vento.

 

ELEGY

 

CJulgado do vento", 1979)

 

Do not open this window.

Do not move away from these blinds.

In this room dead friends

are drinking your beer.

 

A long-lost voice

(only my ears can hear it)

calls from the depths of childhood

and I feel myself bleed.

 

An age-old drizzle lands

in my hair, and shines.

A child plays with a hammer

that falls upon my heart.

 

So many things silenced!

The eye, cloudy, strolls

through the yard, where there is naught but

the childhood of others

                                and the wind

 

 

 

 

 

SONETO DO ANJO DE MAIO

 

("A canção de Beatriz e outros poemas", 1990)

 

 

Então, em maio, um Anjo incendiou-me.

Em seu olhar azul havia um dia

claro como os da infância. E a alegria

entrou em mim e em sua luz tomou-me

 

o coração. Depois, suave, guiou-me

para mim mesmo, para o que morria,

em meu peito, de olvido. E a noite, fria,

fez-se cálida - e a mágoa desertou-me.

 

Já não eram as cinzas sobre o Nada,

mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,

e montes, e horizontes sem ter fim!

 

Era a vida de volta, resgatada,

e nova, e para sempre, pelas chamas

desse Anjo de maio que arde em mim!

 

SONNET OF THE ANGEL OF MAY

 

("A canção de Beatriz e outros poemas", 1990)

 

Then in May, an Angel burned me.

In his blue gaze there was a ofay

bright as those of childhood. And joy

entered into me and with its light took me

 

by the heart. Then, gently, he guided me

to myself, to what was dying,

in my breast, forgotten. And the cold night,

became warm — and hurt deserted me.

 

No longer were there ashes on Nothingness,

but rivers, and winds, and trees, and flames,

and mountains and horizons, endless!

 

Life was back, retrieved,

and new, and forever, by the flames

of that Angel of May that bums in me!

 

 

SONETO DA NEGRA

 

("Elegia de agosto e outros poemas", 2005)

 

a Maria da Paixão

 

 

A cor da suavidade é que a modula.

Nela se abisma a luz e se revela

incapaz de alterar nada daquela

penumbra que a atrai, absorve, anula.

 

Nessa paisagem que coleia, ondula

como um rio, ou o mar ( e é dela e ela),

um vento violento me desvela

um animal que me trucida e ulula.

 

O tom da suavidade não se altera,

eleva um canto cálido e me diz

que são garras de amor, e é bela a fera.

 

E assim, em carne rubra e cicatriz,

entrego à cor profunda que me espera

estes despojos em que sou feliz.

 

 

SONNET OF THE BLACK WOMAN

 

("Elegia de agosto e outros poemas", 2005)

 

for Maria da Paixão

 

The color of softness is what modulates.

In it the light is astonished and proves

incapable of changing anything in that

penumbra that attracts, absorbs, annuls it.

 

In this landscape that snakes, undulates

like a river, or the sea (and it is hers and her)

a violent wind unveils me

an animal that rips at me and ululates.

 

The tone of softness does not change,

elevates a warm chant and says

they are the claws of love, beauty and beast.

 

And so, in crimson flesh and scar,

I surrender to the deep hue that awaits me

these spoils in which I am happy.

 

 

SONETO DO QUINTAL

 

("Memória da chuva", 1996)

 

para Matilde e Mário, em Monte Gordo, março de 91

 

 

Ao recordar a moça, eu me comparo

ao cão que vejo a interrogar a brisa.

O que é mal comparar: bem mais precisa

é a mensagem de odores que o faro

 

decifra. E então medito sobre o claro

ser desse cão, e invejo essa precisa

vocação de existir. E ausculto a brisa

e nada nela encontro. Nada. E paro

 

de lembrar e pensar. Há mais profícuas

ocupações. Exemplo: só olhando

estar. Cão. Nuvens. Ramos. E, dormindo,

 

um gato. E essas formigas - três - conspícuas,

vestidas a rigor, deliberando

em tomo de uma flor de tamarindo.

 

 

BACKYARD SONNET

 

("Memoria da chuva", 1996)

 

For Matilde and Mario, in Monte Gordo, March 91

 

 

Recalling the girl, I liken myself

to the dog that I see interrogate the breeze.

Which is a poor comparison: the message

of odors the nose deciphers

 

is much more precise. Then I meditate on the clear

being of that dog, and envy that precise

vocation of existence. And I auscultate the breeze

and find nothing in it. Nothing. And I stop

 

to remember and think. There are more fruitful

occupations. Example: just watching the act of

being. Dog. Clouds. Branches. And, sleeping,

 

a cat. And these ants - three - conspicuous,

dressed to the nines, deliberating

around a tamarind flower.

 

 

 

 

 

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Página ampliada e republicada em março de 2008.Ampliada e republicada em abril de 2014. Ampliada e republicada em novembro de 2015. Ampliada e republicada em abril de 2018.

Página ampliada e republicada em dezembro de 2020

 


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