RUY ESPINHEIRA FILHO
É um dos grandes poetas brasileiros da atualidade, autor de uma obra vasta e valiosa que começou na década de 60 (em antologias) e se renova constantemente e mantém o melhor de nossa poesia.
Ganhador dos prêmios Cruz e Sousa (1981), Ribeiro Couto (1997). Academia Brasileira de Letras (2006), Jabuti – 2º lugar (2006). Há ainda o Prêmio Rio de literatura (romance, 1985, 2º lugar).
Trata-se de uma obra que deveria figura como referência obrigatória ao se falar do que há de melhor na poesia contemporânea brasileira. Cláudio Willer
“ Poesia concentrada e de sutil expressão”. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, sobre o primeiro livro de Ruy Espinheira Filho, Heléboro (1974).
See also: TEXTS IN PORTUGUESE AND ENGLISH
Veja a resenha do livro:
RUY ESPINEIRA FILHO: PAIXÃO E PRAZER DA POESIA por Florisvaldo Mattos – por Florisvaldo Mattos
Ver E-book: https://issuu.com/antoniomiranda/docs/ruy_espinheira_filho
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Babilônia & outros poemas. São Paulo: Patuá, 2017. 140 p. Editor Eduardo Lacerda. Ilustração, capa, projeto gráfico: Leonardo Mathias. ISBN 978-85-8297-375-2 Ex. bibl. Antonio Miranda
BABILÔNIA
Ontem não vi você em Babilônia
Num fragmento de argila, em escrita cuneiforme,
cerca de 3.000 anos a.C.
Ao saber da notícia, revivi
aquela noite funda em que escrevi
(afogava-me um pântano de insónia):
Ontem não vi você em Babilônia.
Só o que restou de tudo: um fragmento
de tabuinha que escapou do vento
do Tempo. Sob o pó, pulsando, a insônia:
Ontem não vi você em Babilônia.
Foi a última vez que lhe escrevi
e nenhuma resposta recebi.
Ainda respiro o que chorei na insônia:
Ontem não vi você em Babilônia.
Os arqueólogos me decifraram
e, milênios além, se emocionaram,
por ser só amor e dor a voz da insônia:
Ontem não vi você em Babilônia.
Era o bastante. O Tempo na tabuinha
quase tudo apagou da história minha,
porém deixou o essencial da insônia:
Ontem não vi você em Babilônia.
E assim contam-se vida e seus escombros
que um dia se partiram nos meus ombros.
E na alma, desde então, só noite e insônia:
Ontem não vi você em Babilônia.
SONETO DE TONS
PARA COMPOSIÇÃO DE POEMAS
Um sorriso doendo nos sentidos.
Um bilhete de amor entregue ao vento.
A janela de vidros coloridos
deslumbrando a manhã e o pensamento.
Casuarinas de galhos estendidos
sobre um tempo sereno, lento, lento...
E janeiros de sonhos refloridos
erguendo-se do campo sonolento.
O coral no coreto. Noite ardente,
toda a cidade imenso vagalume.
No coração um cintilante alento.
Esperanças na rosa do Nascente.
E esse sorriso. E os olhos. E o perfume.
E um bilhete de amor entregue ao vento...
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Nesta tarde meiga de julho. Janoaatão, PE: Editora Guararapes EGM, 2015. 32 p. ilus. col. Editor Edson Guedes de Moraes. Ex. bibl. Antonio Miranda
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Milênio e outros poemas. São Paulo: Editora Patuá, 2016. ISBN 978-85-8297-280-9 Editor: Eduardo Lacerda. Ilustração, projeto gráfico e diagramação: Leonardo Mathias. 148 p. 14x21 cm. “ Ruy Espinheira Filho “ Ex. bibl. Antonio Miranda
HÁLITOS
Desperto ao último
hálito da noite
que observo nos coqueiros lânguidos,
nos tímidos galhos da romanzeira,
nas nuvens já quase sem memória
das sombras.
Último hálito da noite,
desta que está acabando
de passar.
Sereno hálito, como espero que seja
o meu último
quando chegar a noite que jamais
passará.
BREVE CANÇÃO DA CAMINHADA
Vamos todos caminhando,
entre o amor e a morte,
por sobre o fio da navalha,
sem sul, leste, oeste ou norte.
E vamos, da luz da infância,
até a alma anoitecida,
buscando um sentido no
nenhum sentido da vida.
Que mais fazer? Ah, brindar,
entre o que tarda e o de súbito,
às vitórias sobrea morte,
até o último decúbito.
BREVE CANÇÃO DAS PARTIDAS ETERNAS
Transatlânticos ou canoa
furada? Nem bem, nem mal,
que ir até a nado serve
como saída final.
Mas isso é esforço demais.
Basta só um suspiro fundo.
E há até quem nem feche os olhos
num último adeus ao mundo.
No mais, como não há queixas,
nunca, depois da partida,
todos chegam muito bem
ao outro lado da vida...
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Nesta tarde meiga de julho. Jaboatão, PE: Editora Guararapes EGM, 2015. 32 p. ilus. col. Editor Edson Guedes de Moraes. “Ruy Espinheira Filho” Ex. bibl. Antonio Miranda https://issuu.com/antoniomiranda/docs/ruy_espinheira_filho
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Noite alta e outros poemas. São Paulo: Editora Patuá, 2015. ISBN 978-85-8297-213-7 Projeto gráfico e capa: Nathan Matos. Imagem da capa: Evandro Alves Maciel. Editor: Eduardo Lacerda. 96 p. 15,5x22,5 cm. “ Ruy Espinheira Filho “ Ex. bibl. Antonio Miranda
CANÇÃO DE UM CONTO
Tuas mãos pequeninas,
como as mãos das fadas,
fizeram suaves
minhas madrugadas.
Teus joelhos ao sol,
como duas luas
acendendo mais
tuas coxas nuas,
tanto enluararam
o meu abandono
que as noites ficaram
desertas de sono.
Teus olhos profundos
em que mergulhei
eram labirintos
não mais me encontrei.
E tudo isso foi.
E hoje é um conto, enfim,
que saiu do Tempo
e se conta em mim.
Como outros, tantos,
histórias da história
da minha incessante
maré da memória.
CANÇÃO DO CLARO MUNDO
Havia um pássaro preto,
um periquito, um sofrê
e outros seres avoantes
que agora pouco se vê
— como o curió, o tiê-sangue,
a perdiz, a guriatã
que habitavam nossa vida
desde raiada a manhã.
Um papagaio fardado
de Bandeira Nacional
andava por toda a casa
com pose de Cardeal,
sem ligar para ninguém
— pessoas, cachorros, gatos —
e enfático sermoneava
um latinório nos matos.
Havia banhos de chuva
nas beiradas do telhado,
urubus e gaviões,
e algum tatu desgarrado.
Havia filtro de barro
para a água de barril
e muitas saúvas vorazes
que iam comer o Brasil.
E havia um amplo quintal
com vasto tamarindeiro,
besouros, sapos, preás,
sonoroso galinheiro.
Havia um pudor de lembrar
as crueldades dos homens,
muito mais assustadores
que os uivantes lobisomens.
Havia ainda o Romãozinho,
que às vezes, na madrugada,
vinha por ordem na casa
deixada desarrumada.
“Foi Romãozinho” —diziam,
sorrindo. Mas, se ajudava,
sendo um diabo-criança,
às vezes se endiabrava,
perturbando o galinheiro
e outros animais,
apedrejando o telhado
e mais façanhas tais;
mas os bichos se aquietavam
e nunca foi encontrada
nem a sombra de uma pedra
sobre as telhas atirada.
(Não sei quando foi-se embora
o Diabinho do Lar;
busco notícias, mas dele
nunca mais ouvi falar.)
Havia a avó que acordava,
mesmo na época fria,
e saía à porta para
levar seu bom-dia ao dia
(contava que frio fazia
era mesmo em sua terra
da Itália, de onde partira
no início da Grande Guerra).
Havia o pai trabalhando
na máquina de escrever,
ou sentado na poltrona,
longamente a ler, a ler...
Havia um jardim. E a mãe
conversando com as flores
para que se abrissem mais
alegres em suas cores.
Sim, havia um claro mundo
que pareci sem fim.
Como é. E seguirá sendo
até a noite de mim.
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Viagem & outros poemas. Salvador: P55 edições, 2011. 28 p. (Coleção Cartas Bahianas) formato 10x19 cm. Isbn 85-89655-76-8 Col. A.M. (EA)
APOLO
Não nos surgiste como aos argonautas
quando
fizeste tremer a ilha
sob teus passos
e então te ergueste estendendo nas nuvens
os cabelos de ouro.
Mas senti que estavas
por todo o dia
acompanhando-nos na visita
às formas magníficas
que há milênios foram erguidas
nas alturas
em teu louvor.
Obrigado.
Embora não tenhamos te ofertado presentes,
como Midas, rei da Frigia,
que te enviou seu trono real,
ou Giges, da Lidia,
antepassado de Creso,
que te saudou com crateras de ouro
e incontáveis ex-votos
de ouro e prata,
nunca mais seremos os mesmos,
pois que respiramos a fímbria a brisa
tocada pelo hálito de teus solenes ciprestes
de folhas verdes
pedras
e unção.
Delfos, outubro de 2010.
De
ESPINHEIRA FILHO, Ruy.
Livro de canções e inéditos.
Salvador: P55 Edições, 2011. 48 p. (Cartas Bahianas)
ISBN 978-85-89655-65-1. Formato 10x19 cm. A capa com uma orelha que se encaixa num corte da sobrecapa, formando uma espécie de envelope, a sugerir a ideia das “Cartas Bahianas”. Col. A.M. (EA)
Canção matinal
a Ricardo Vieira Lima
Acorda bem cedo o homem
da casa de telha-vã
e abre janela e porta
como se abrisse a manhã.
E eis que a vida não é mate
nem triste, nem só, nem vã.
É doce: cheira a goiaba
e brilha como romã
orvalhada. E ele caminha,
o homem, com passos de lã
para em nada perturbar
a quietude da manhã.
Já não há mágoas de perdas
nem angústias de amanhã,
pois a alma que há na calma
entre a goiaba e a romã
é a própria alma do homem
da casa de telha-vã,
que declara a noite morta
e acende em si a manhã.
De
Rui Espinheira Filho
SOB O CÉU DE SAMARCANDA
Poemas
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
Fundação Biblioteca Nacional, 2009.
240 p. ISBN 978-85-286-1413-8
Ruy Espinheira Filho surge em novo livro para a alegria de seus admiradores. Mantêm-se firme no lirismo, sem assumir modismos que se apresentam como temporada passageira, no cenário de nossa poesia. O caminho dele é seguro. Faz das reminiscências e fantasias, nos limites imaginários de Samarcanda, um território fluído, sem afetações, no auge de sua maturidade criativa. Faz tributo queixoso ao João Cabral de Melo Neto, cujo estilo antecipava o minimalismo e o lirismo enxuto mas espesso que Ruy confessa e contesta "Desconforta-me o poeta/ escrever em tom avesso à vida", Ruy o poeta da vida e de seu avesso. Antonio Miranda
SONETO NOTURNO
Penso na noite como um rio profundo
e lembro coisas deste e de outro mundo.
Outros mundos, aliás, que a vida é vasta
como diversa. E mesmo assim não basta,
o que nos faz tecer ainda outras vidas
nas nuvens da alma, e que nos são vividas
com tanta força quanto as outras mais,
em seus sonhos de agora e de jamais
(ou melhor: com mais força, pois que estamos
ainda mais vivos no que nos sonhamos).
Penso na noite como um mar sem fim
quebrando sombras sobre o cais de mim.
E , enfim, sem esperanças e sem prece,
pressinto a noite que não amanhece.
OS MORTOS
Há uma luz suave em que eles respiram.
Não mudaram nada e fingem não ver
como sou mais moço nas fotografias.
Contam histórias, sempre, mesmo quando em silêncio
(e tanto quanto se contam, contam-me também de mim).
Não mais precisam beber, só se refletem no copo
que ergo e em que bebo, por eles e por mim,
trespassado ainda dos sonhos que compunham a alma
de que se iluminava o moço nas fotografias.
Veja a resenha do livro:
RUY ESPINEIRA FILHO: PAIXÃO E PRAZER DA POESIA por Florisvaldo Mattos – por Florisvaldo Mattos
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VESTIDOS
Dos vossos vestidos brancos
é que me nascia o dia
aos domingos, e a alma nítida
de uma inquieta alegria.
Dos vossos vestidos brancos
vinha uma luz que esplendia
e desfazia o que era
sombra da noite vazia.
(Ou pior: noite habitada
de ânsias, melancolia,
desejos da carne, assombros,
e outros charcos de agonia.)
Em vossos vestidos brancos
fremia uma melodia
de anjos de tranças brandas
em que meu tremor vivia.
Dos vossos vestidos brancos
me vem o que, neste dia,
aquece o que ainda me resta
de escombros de poesia.
CIRCO
Raia o sol, suspende a lua,
o palhaço está na rua.
Tremula a lona da praça,
tempos de assombro e de graça.
Ah, que gente tão risonha
nessa cidade que sonha
tigres, grifos, leões de oiro
e mulheres em vôo loiro,
vindas de rússias e franças
- e acima das esperanças...
Nunca além de uma semana
permanece essa profana
prova de que Deus existe
e nem sempre a vida é triste.
Baixa o sol, se esconde a lua,
não há mais nada na rua,
caminho de pó e vento,
formigas, cão sonolento...
Porém já nada é tristonho,
- infenso a tempo e distância –
a nos sonhar essa infância.
SONETO DO ANJO DE MAIO
Então, em maio, um Anjo incendiou-me.
Em seu olhar azul havia um dia
claro como os da infância. E a alegria
entrou em mim e em sua luz tomou-me
o coração. Depois, suave, guiou-me
para mim mesmo, para o que morria,
em meu peito, de olvido. E a noite, fria,
fez-se cálida – e mágoa desertou-me.
Já não eram as cinzas sobre o Nada,
mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,
e montes, e horizontes sem ter fim!
Era a vida de volta, resgatada,
e nova, e para sempre, pelas chamas
desse Anjo de maio que arde em mim!
Extraídos do livro A Cidade e os Sonhos / Livro de Sonetos. Salvador, Bahia: Edições Cidade da Bahia, 2003. 115 p. ilus. |
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DESCOBERTA
Só depois percebemos
o mais azul do azul,
olhando, ao fim da tarde,
as cinzas do céu extinto.
Só depois é que amamos
a quem tanto amávamos;
e o braço se estende, e a mão
aperta dedos de ar.
Só depois aprendemos
a trilhar o labirinto,
mas como acordar os passos
nos pés há muito dormidos?
Só depois é que sabemos
lidar com o que lidávamos.
E meditamos sobe esta
inútil descoberta
enquanto, lentamente,
da cumeeira carcomida
desce uma poeira fina
e nos sufoca.
(Heléboro, 1974)
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Julgado do vento. Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. 87 p. (Coleção Poesia Hoje, vol. 31). 14x21 cm. Capa Eugênio Hirsch. “ Ruy Espinheira Filho “ Ex. Biblioteca Nacional de Brasília.
RAPTO
Abriram a janela
alta e o dia
penetrou na sala.
O transfigurado
menino diante
da revelação.
Soprando nas telhas
um vento que gira
sóis e estrelas
carrega o menino
através do límpido
retângulo de luz
ao cerne do dia.
Mas que dia? Tudo
é outra coisa, e fria.
E o menino vê
que o que o ilumina
e aquece não
se encontra lá fora
— mas sepulto no
pó da casa morta.
O ROSTO DA CHUVA
Esse rosto na chuva
te olha.
É uma chuva longa, uma
de muitos anos e viagens
correndo por esse rosto.
Densa como sangue, chove.
No rosto, outros rostos
cintilam,
gotas esparsas.
Assim casas, cidades, nomes,
Animais,
marés do peito abismo.
Esse rosto na chuva
te reflete
com o que a vinda,
vida,
te doou e às vezes inscreveu
tão fundo que lá não desces.
Esse rosto
na chuva que circula
em tuas veias
te punge com mil irresgatáveis
e
áspero cresce
sob a pele suave do teu rosto.
(Julgado do Vento, 1979)
POEMA DE NOVEMBRO
O difícil é agüentar até que a morte chegue.
Suportar, por exemplo, a memória do teu corpo
e aquela noite (era maio) sob
o branco incêndio da lua.
E tanto mais, tanto mais.
Uma vida não dá
para contar
uma vida.
E toda uma
às vezes
se consome
numa carícia entre lençóis.
O difícil é agüentar até que a morte
chegue.
A morte
que mata todas as mortes,
sepulta
para sempre
todos os mortos. Como
este cadáver de amor
que me perfuma.
(A Canção de Beatriz, 1990)
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De
MORTE SECRETA E POESIA ANTERIOR
Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984
O AVÔ
1
O avô descansa
de quase um século.
O rosto é sereno
(não sei como pode
mostrar essa calma
após tanto tempo)
e as mãos despediram
todos os gestos.
O avô entre rosas
com seu terno escuro.
Pela primeira vez
indiferente.
Pela primeira vez
desatencioso
com mulher, filhos, netos,
conhecidos, o mundo.
Nem que implorássemos
nos recontaria
as tantas lembranças
entre farrapos de ópera.
Descansa tão fundo e
alto que é impossível
despertá-lo, saber
mesmo onde repousa.
No entanto está em nós
e nos impõe seus traços,
cor de olhos, jeito
de andar, sorrir, falar.
E o mais difícil de
cumprir:
a insuavizável
dignidade.
2
Avô, já nos retiramos.
Em silêncio vamos descendo
a ladeira. Pó do teu pó,
flutuaremos até
que o vento contenha o sopro.
E então te herdaremos
também essa paz final.
Absoluta. Tão perfeita
que nem a saberemos.
DIA DE FINADOS
Tantos são os abandonados
e caminham ásperos no silêncio.
Há os que rezam, os que choram, os que se mantêm
impenetráveis.
E todos depois retornam às casas, aos pequenos
mitos auxiliares de cada dia
sob o indiferente azul do céu.
As flores depositadas sobre as sepulturas
absolvem os mortos.
De
Ruy Espinheira Filho
ELEGIA DE AGOSTO
e outros poemas
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
272 p. ISBN 85-386-1124-8
ESTE DIA
Chegar, assim, a um dia
como este, quem diria?
Ninguém, que não poderia
alguém saber deste dia.
Nem eu, que me prometia
varandas de calmaria
se a uma hora tardia
da vida chegasse um dia.
No entanto, eis-me neste dia,
o qual jamais urdiria
nem em pesadelos; dia
ardendo contra a alegria,
a paz, o amor, a poesia,
o corpo, a esperança; dia
como nenhum: pedraria
fulgurante de agonia.
A FALTA
Falta alguma coisa-
Falta desde sempre.
Desde que me sinto.
Mesmo nos Natais,
quando havia tudo
— árvore, presentes,
luzes, cantos, risos,
a família cálida —
de súbito abria-se,
no intimo, a falta,
sem nome, sem rosto,
sem história, só
presença de ausência-
Tanto interroguei-me
o que me faltava.
Nada respondia.
apenas estava,
mesmo nas diamâncias
do amor, como em tudo
na adolescência,
na idade madura,
nos sinais primeiros
de desesperança
no sonho e na carne.
Como agora esta,
fiel como a sombra
que jamais permite
seja ignorada
minha opacidade.
De tudo o que tive
e tenho, talvez
só haja possuído
mesmo esta fala,
que há de ficar
presente e pungindo
até que eu transponha
o último limiar,
quando então, por fim,
nada faltará.
De
ESPINHEIRA FILHO, Ruy.
As Sombras luminosas.
Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1981.
68 p. “Prêmio Cruz e Sousa – Concurso Nacional de Poesia – 1º lugar”.
A INELUTÁVEL CANÇÃO
Há pouco chovia
e nato chove mais.
Há pouco sorria,
na lua do espelho,
teu corpo; centelha
deflagrando anjos
que a tarde soprava
por sobre os quintais.
Há pouco esplendia
ao sol o regato.
Esplendia e ia
entre os nossos sonhos,
pelos nossos corpos,
atiçando mais
a flama dos sexos
em flor nos quintais.
Há pouco era dia
— e já não é mais!
Faz escuro e ouvimos
um silêncio fundo.
Um silêncio podre
que sobe de nós
— e das sombras dos
extintos quintais.
VEJA O E-BOOK DO POEMA:https://issuu.com/antoniomiranda/docs/ruy_espinheira_filho_064ed45897a6a0
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Deserto. Jaboatão, PE: Editora Guararapes EGM, 2015. 18 p. ilus. col. Edição limitada, Editor: Edson Guedes de Moraes.
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Romance do sapo seco: uma história de assombros. Salvador, Bahia: Edições Cidade da Bahia, 2005. 32 p. ilus. 13X17,5 cm. Cordel. Ex. bibl. Antonio Miranda
(fragmento)
SANTOS do nome e do céu.
E que mais santos houvesse,
pois o que vinha era coisa
de demandar muita prece.
É que o homem dos arcanos,
medição em medição,
ia juntando às suas terras
outros pedaços de chão.
Aos que ousavam discordar,
mesmo em extremo de calma,
retaliava com pragas
de tornar em cinzas a alma.
Aos teimosos, prometia
que sobre sua criação
faria chover doenças
e chamas na plantação.
E acontecia: animais
de cascos, patas e asas
morriam. E vinha o fogo
até o terreiro das casas.
ASSIM, melhor acatar
essa nova medição
que perder tudo ou baixar
a sete palmos do chão.
E eis que o Tinhoso se ia
crescendo em terra, riqueza,
cintilando mais e mais
uma sinistra lordeza.
As terras de Generino
já tinham perdido um lanho
para a medição do homem.
E um lanho de bom tamanho.
Mas eis, então, que o Capeta
achou que era esse lanho
muito pouco — e mediu mais,
lanho de amplo tamanho,
que tirava o que existia
de melhor na plantação
e o que ali acontecesse
desgarrar da criação.
(...)
VOZES DE AÇO. XXII Antologia poética de diversos autores. Homenagem ao poeta Ruy Espinheira Filho. Org. Jean Carlos Gomes. Apresentação: Antonio Carlos Secchin, Anderson Braga Horta, Álvaro Alves de Faria, Antonio Olveira Pena, Antonio Torres
e Ricardo Vieira Lima. Volta Redonda, RJ: Gráfica Drumond, 2020. 94 p. 15 x 21 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
"Ruy Espinheira é um grande poeta, cuja obra tenho o prazer de acompanhar há décadas. Tanto no manejo de formas fixas, quanto
na utilização do verso livre, percebe-se a mesma extraordinária
vocação lírica do autor, que, como poucos, alia qualidade a comunicabilidade." ANTONIO CARLOS SECCHIN
SONETO DA NEGRA
a Maria da Paixão
A cor da suavidade é que a modula.
Nela se abisma a luz e se revela
incapaz de alterar nada daquela
penumbra que a atrai, absorve, anula.
Nessa paisagem que coleia, ondula
como um rio, ou o mar (e é dela e ela),
um vento violento me desvela
um animal que me trucida e ulula.
O tom da suavidade não se altera,
eleva um canto cálido e me diz
que são garras de amor, e é bela e fera.
E assim, em carne rubra e cicatriz,
entrego à cor profunda que me espera
estes despojos em que sou feliz.
ENQUANTO
Um dia recordarei
que aqui estive, assim, à brisa
de janeiro, folhas verdes
acenando sobre o muro,
céu azul, silêncio,
como
lembro a tarde em que cruzaste
o leito seco do rio,
as tranças ruivas e longas,
os seios ainda dormindo
na blusa
e além: infância.
Um dia recordarei
esta hora, estas palavras
que se escrevem leves como
a brisa, e com ela passam
para o jardim em que lembra
a minha alma
enquanto
tarda o tempo de esquecer.
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Extraídos de
ANTOLOGÍA DE LA POESÍA BRASILEÑA
Santiago de Compostela, Ed. Laiovento, 2001
ISBN 84 8487 001 4
DESCUBRIMIENTO
Sólo después divisamos
lo más azul del azul,
mirando, al final de la tarde,
las cenizas del cielo extinto.
Sólo después amamos
a quién amábamos;
y se extiende el brazo, y la mano
aprieta dedos de aire.
Sólo después aprendemos
a pisar el laberinto;
pero ¿cómo recordar los pasos
en los pies hace mucho dormidos?
Sólo después sabemos
lidar con lo que lidábamos.
Y meditamos sobre este
inútil descubrimiento
mientras tanto, lentamente,
del tejado carcomido
desciende un polvo fino
y nos sofoca.
(Heléboro, 1974)
EL ROSTRO EN LA LLUVIA
Ese rostro en la lluvia
te mira.
Es una lluvia continua, uma
de muchos años y viajes
corriendo por ese rostro.
Densa como sangre, llueve.
Em el rostro, otros rostros
resplandecen,
gotas dispersas.
Así casas, ciudades, nombres,
animales,
mareeas del pecho abismo.
Ese rostro en la lluvia
te refleja
com lo que la venida,
vida,
te dono y a veces inscribió
tan hondo que allá no descendies.
Ese rostro
en la lluvia que circula
por tus venas
te punge con mil incumplimientos
áspero crece
bajo la piel suave de tu rostro.
(Julgado do Vento, 1979)
POEMA DE NOVIEMBRE
Lo difícil es aguantar hasta que la muerte llegue.
Soportar, por ejemplo, el recuerdo de tu cuerpo
y aquella noche (era en mayo) bajo
el blanco incendio de la luna.
Y tanto más, tanto más.
Una vida no da
para contar
se consume
en una caricia entre sábanas.
Lo difícil es aguantar hasta que la muerte
llegue.
La muerte
que mata todos los muertos,
sepulta
para siempre
todos los muertos. Como
este cadáver de amor
que me perfuma.
(A Canção de Beatriz, 1990)
ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Estação infinita e outras estações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. 587 p. 15,5x23 cm. Capa: Raul Fernandes. Imagem de capa: Michael Nelson. ISBN 978-85-286-1631-6 Col. A.M.
CANÇÃO DAS CïNZAS DA TARDE
As cinzas da tarde descem
sobre o horizonte que arde
em agonia, e o que tecem
vem das cinzas de outra tarde.
Lembras-te, amor? Não te lembras.
És esquecimento e calma.
E entre as coisas que deslembras
está o que eu chamava alma
em mim, e que hoje também
se esquece de si, cansada
de se sonhar e ninguém
sonhar do seu sonho. Nada
foi colhido dessa hora
senão o vê-la passar.
Olho estas cinzas de agora
apagando as luzes do ar
— eu, aqui, sem quem me guarde
de ressentir sempre, assim,
quando agoniza uma tarde,
esta história que, enfim,
jaz nas cinzas de outra tarde
(de outra tarde — c de mim).
[ ESPINHEIRA FILHO, Ruy ] CANÇÕES DE DEPOIS DE TANTO. CD com música de Carlos Barral e outros mjúsicos e letras de poetas baianos: Ruy Espinheira Filho entre eles. Inclui CD e folheto com as letras das música. 12x12 cm. Col. A.M.
TEXTS IN PORTUGUESE AND ENGLISH
AUTORES BAIANOS: UM PANORAMA; BAHIANISCHE AUOTEREN: EIN PANORAMA; BAHIAN AUTHORS: A PANORAMA; AUTORES BAHIANOS: UN PANOROMA. Organização Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB). Salvador, Bahia: P55 Edições, 2013. 471 p + 10 p. s/ com as biografias dos autores nas quatro línguas. p. 18x25 cm. Inclui textos dos poetas Antonio Risério, Daniela Galdino, Florisvaldo Mattos, Karina Rabinovitz, Kátia Borges, Luis Antonio Cajazeira Ramos, Myriam Fraga, Roberval Pereyr e Ruy Espinheira Filho e traduções ao alemão, inglês e espanhol. Col. A.M.
MARINHA
("Heleboro", 1974)
Meus olhos testemunham
a invisibilidade das ondinas,
a lenta morte dos arrecifes
e os canhões de Amaralina.
Vou, a passo gnominado,
pisando a areia fina
da praia.
Pombas sobrevoam
os canhões de Amaralina.
Parece a vida estar completa
na paz que o azul ensina.
A brisa ilude a vigilância
dos canhões de Amaralina.
Nem tua ausência, amor, perturba
esta alegria matutina
onde só há o claro e o suave...
(E os canhões de Amaralina?).
Tudo esta certo: mar, coqueiros,
aquela nuvem pequenina...
Mas - o que querem na paisagem
os canhões de Amaralina?
SEASCAPE
("Heleboro", 1974)
My eyes witness
the invisibility of the undines,
the slow death of the reefs
and the cannons of Amaralina.
I go, at a sententious pace,
treading the fine sand
of the beach.
Doves fly over
the cannons of Amaralina.
Life seems to be complete
in the peace the blue teaches.
The breeze eludes the vigilance
of the cannons of Amaralina.
Not even your absence, love, disturbs
this morning joy
where there is nothing but the bright and the smooth
(And the cannons of Amaralina?).
Everything is right: sea, palm trees,
that tiny cloud ...
But - what do they want in the landscape,
the cannons of Amaralina?
DESCOBERTA
("Heleboro", 1974)
So depois percebemos
o mais azul do azul,
olhando, ao fim da tarde,
as cinzas do céu extinto.
Só depois é que amamos
a quem tanto amávamos;
e o braço se estende, e a mão
aperta dedos de ar.
Só depois aprendemos
a trilhar o labirinto;
mas como acordar os passos
nos pés há muito dormidos?
Só depois é que sabemos
lidar com o que lidávamos.
E meditamos sobre esta
inútil descoberta
enquanto, lentamente,
da cumeeira carcomida
desce uma poeira fina
e nos sufoca.
DISCOVERY
("Heleboro", 1974)
Only later do we realize
the bluest of blue,
gazing, in the evening,
at the ashes of the extinguished sky.
Only then do we love
those whom we so greatly loved;
and the arm reaches out, and the hand
presses fingers of air.
Only then do we learn
to walk the labyrinth;
but how to awaken the steps
in feet long dormant?
Only then can we
deal with what we dealt with.
And we meditate on this
useless discovery
while, slowly,
a fine dust falls
from the worm-eaten coping
and we suffocate.
ELEGIA
Clulgado do vento", 1979)
Não abram esta janela.
Não afastem estas cortinas.
Nesta sala os amigos mortos
estão bebendo a sua cerveja.
Uma voz há muito perdida
(só os meus ouvidos a ouvem)
chama do fundo da infância
e eu me sinto sangrar.
Pousa uma garoa antiga
nos meus cabelos, e brilha.
A criança brinca com um martelo
que cai sobre o meu coração.
Tanta coisa silenciada!
O olhar, turvo, passeia
pelo quintal, onde só há
a infância alheia
e o vento.
ELEGY
CJulgado do vento", 1979)
Do not open this window.
Do not move away from these blinds.
In this room dead friends
are drinking your beer.
A long-lost voice
(only my ears can hear it)
calls from the depths of childhood
and I feel myself bleed.
An age-old drizzle lands
in my hair, and shines.
A child plays with a hammer
that falls upon my heart.
So many things silenced!
The eye, cloudy, strolls
through the yard, where there is naught but
the childhood of others
and the wind
SONETO DO ANJO DE MAIO
("A canção de Beatriz e outros poemas", 1990)
Então, em maio, um Anjo incendiou-me.
Em seu olhar azul havia um dia
claro como os da infância. E a alegria
entrou em mim e em sua luz tomou-me
o coração. Depois, suave, guiou-me
para mim mesmo, para o que morria,
em meu peito, de olvido. E a noite, fria,
fez-se cálida - e a mágoa desertou-me.
Já não eram as cinzas sobre o Nada,
mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,
e montes, e horizontes sem ter fim!
Era a vida de volta, resgatada,
e nova, e para sempre, pelas chamas
desse Anjo de maio que arde em mim!
SONNET OF THE ANGEL OF MAY
("A canção de Beatriz e outros poemas", 1990)
Then in May, an Angel burned me.
In his blue gaze there was a ofay
bright as those of childhood. And joy
entered into me and with its light took me
by the heart. Then, gently, he guided me
to myself, to what was dying,
in my breast, forgotten. And the cold night,
became warm — and hurt deserted me.
No longer were there ashes on Nothingness,
but rivers, and winds, and trees, and flames,
and mountains and horizons, endless!
Life was back, retrieved,
and new, and forever, by the flames
of that Angel of May that bums in me!
SONETO DA NEGRA
("Elegia de agosto e outros poemas", 2005)
a Maria da Paixão
A cor da suavidade é que a modula.
Nela se abisma a luz e se revela
incapaz de alterar nada daquela
penumbra que a atrai, absorve, anula.
Nessa paisagem que coleia, ondula
como um rio, ou o mar ( e é dela e ela),
um vento violento me desvela
um animal que me trucida e ulula.
O tom da suavidade não se altera,
eleva um canto cálido e me diz
que são garras de amor, e é bela a fera.
E assim, em carne rubra e cicatriz,
entrego à cor profunda que me espera
estes despojos em que sou feliz.
SONNET OF THE BLACK WOMAN
("Elegia de agosto e outros poemas", 2005)
for Maria da Paixão
The color of softness is what modulates.
In it the light is astonished and proves
incapable of changing anything in that
penumbra that attracts, absorbs, annuls it.
In this landscape that snakes, undulates
like a river, or the sea (and it is hers and her)
a violent wind unveils me
an animal that rips at me and ululates.
The tone of softness does not change,
elevates a warm chant and says
they are the claws of love, beauty and beast.
And so, in crimson flesh and scar,
I surrender to the deep hue that awaits me
these spoils in which I am happy.
SONETO DO QUINTAL
("Memória da chuva", 1996)
para Matilde e Mário, em Monte Gordo, março de 91
Ao recordar a moça, eu me comparo
ao cão que vejo a interrogar a brisa.
O que é mal comparar: bem mais precisa
é a mensagem de odores que o faro
decifra. E então medito sobre o claro
ser desse cão, e invejo essa precisa
vocação de existir. E ausculto a brisa
e nada nela encontro. Nada. E paro
de lembrar e pensar. Há mais profícuas
ocupações. Exemplo: só olhando
estar. Cão. Nuvens. Ramos. E, dormindo,
um gato. E essas formigas - três - conspícuas,
vestidas a rigor, deliberando
em tomo de uma flor de tamarindo.
BACKYARD SONNET
("Memoria da chuva", 1996)
For Matilde and Mario, in Monte Gordo, March 91
Recalling the girl, I liken myself
to the dog that I see interrogate the breeze.
Which is a poor comparison: the message
of odors the nose deciphers
is much more precise. Then I meditate on the clear
being of that dog, and envy that precise
vocation of existence. And I auscultate the breeze
and find nothing in it. Nothing. And I stop
to remember and think. There are more fruitful
occupations. Example: just watching the act of
being. Dog. Clouds. Branches. And, sleeping,
a cat. And these ants - three - conspicuous,
dressed to the nines, deliberating
around a tamarind flower.
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Página ampliada e republicada em março de 2008.Ampliada e republicada em abril de 2014. Ampliada e republicada em novembro de 2015. Ampliada e republicada em abril de 2018.
Página ampliada e republicada em dezembro de 2020
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