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BETO HOISEL
Arquiteto e escritor, natural de Ilhéus - BA (1940), publicou o livro de science fiction Anais de um simpósio imaginário, pela Editora Palas Athena, de São Paulo, em 1998.
IARARANA – revista de arte, crítica e literatura. Salvador, Bahia. No. 2 – 1999
O lamento de Hipácia
Sinto em minha carne, em minha pele, a fria proximidade da nudez da morte.
Ouço lá fora a multidão dos seguidores de Cirilo,
sequiosos de destruição e horror.
Sinto em meus ossos nus o sopro gelado da ignorância, da brutalidade,
apagando luzes que por séculos brilharam.
Sinto a náusea, a vertigem, de um mergulho em mil anos de escuridão e silêncio.
Abismo!
Por mais de sete séculos,
brilhou em Alexandria um grande farol que iluminou os homens dê todas as nações
nas rotas do conhecimento e da arte.
Por mais de sete séculos,
aqui, na encruzilhada dos tempos,
reunimos os valores perenes do mundo civilizado.
Por mais de sete séculos.
escrevemos e copiamos, traduzimos e catalogamos, compramos, furtamos e roubamos
toda palavra preciosa que foi possível encontrar.
Por mais de sete séculos,
reunimos e classificamos, corrigimos e organizamos, fizemos edições e as preservamos,
com o critério e a paciência de zelosos escribas.
Dos navios que por aqui passaram, confiscamos papiros e pergaminhos.
Dos templos e palácios de todas as nações, expropriamos os manuscritos.
deixando o ouro e as pedrarias.
De Atenas e Siracusa, de Mileto e Abu-Simbel, de Cartago e de Roma.
do planalto de Anatólia e até da índia distante,
trouxemos palavras e ideias, relatos e teoremas, o teatro e a ciência dos astros, a medicina e a geometria.
Aqui, eu construí a casa das palavras.
Poetas e filósofos têm aqui o seu refúgio, a sua fortaleza.
Cientistas e historiadores, estudiosos e sábios, aqui vieram para conhecer
o pensamento de seus pares que viveram em outros tempos e remotos lugares.
Aqui, vive ainda o espírito daqueles que realmente viveram.
Aqui, perdura o pensamento dos que criaram, estudaram e compreenderam.
Dos que fizeram o mundo, o cosmos que é, que fomos e poderá vir a ser. Aqui se amou o saber, o pensamento claro, e a espantosa lucidez dos poetas cegos.
Cento e vinte peças de Sófocles, somente naquela estante.
Toda a obra erudita de Platão de Atenas, e também seus diálogos,
para a compreensão dos leigos.
Quatrocentos mil anos da história do mundo, por Berossus de Babilónia,
desde a Criação até o Dilúvio Universal.
Dezenove diferentes relatos dos feitos e das idéias
de Jesus de Nazaré,
há quatro séculos assassinado, quando ensinava uma lição de amor,
agora pervertida por seus seguidores.
Mateus, Marcos, Nicodemos, Tomé, Maria Magdalena,
Valentino, Pedro, João, Bartolomeu,
Felipe, Lucas, Tiago,
e tantos, e tantos autores..
Testemunhas, relatores, visionários, copistas ou comentadores
dos fatos sucedidos.
Tantos livros que não germinaram, tantos textos declarados falsos
em condenações sem "discernimento,
mas que agora, aqui, guardamos em cuidados preservados.
Até quando? Até quando?
E a turba que lá fora clama não é a mesma que exigiu a morte do rabi?
São seguidores daquele homem, ou de Cirilo, o Patriarca, que ambiciona o poder imperial
para sua Igreja e para a sua hierarquia?
Oh, versos de Píndaro e de Homero;
oh, engenhos de Arquimedes e de Heron;
oh, claros cristais de Pitágoras e de Euclides,
Quem sobreviverá ao vendaval de fogo da ignorância e da insensatez?
Oh, céus! Oh céus de Hiparco e de Aristarco, quem sobreviverá?
Oh, abismos da aniquilação e do esquecimento, quem sobreviverá?
Oh, máscaras de Eurípedes, personas de Aristófanes, Quem sobreviverá? Quem sobreviverá?
Quem sobreviverá? Quem sobreviverá?
Hipácia - astrónoma, matemática, física, filósofa e historiadora - foi a última diretora da Biblioteca de Alexandria, esfolada viva com cascas de ostras pelos fanáticos do Patriarca Cirilo, pouco antes do incêndio que destruiu uma das maiores realizações culturais da humanidade, em todos os tempos
Hipácia foi relegada ao esquecimento, seu nome foi banido dos registros, sua obra destruída.
Cirilo foi canonizado.
Página publicada em junho de 2019
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