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POETAS DO AMAZONAS

Coordenação: Donaldo Mello e Inês Sarmet

 


Inês Sarmet

s/ foto do acervo do escritor Francisco Vasconcelos, que registra
lançamento de Cartilha do bem amar com lições de bem sofrer, 1965)
 

FARIAS DE CARVALHO


Carlos Farias Ouro de Carvalho nasceu em 8 de setembro de 1930, em Manaus. Tendo sido professor de Português e Literatura Brasileira do Colégio Estadual Pedro II, em sua cidade natal, era também orador de grande poder encantatório, graças ao manejo das palavras e à riqueza dos argumentos. Jornalista destacado, colaborou em diversos jornais de Manaus. Foi Deputado Estadual e, depois, serviu como funcionário no Senado Federal, em Brasília. Tendo sido membro fundador e depois presidente do Clube da Madrugada, em Manaus, estreou na poesia com Pássaro de cinza (Manaus, 1957; reeditado pela Valer em 2000, no âmbito da Coleção Resgate). Seu segundo livro de poemas foi Cartilha do bem amar com lições de bem sofrer (Manaus, 1965). Faleceu em Niterói em 25 de junho de 1997.

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Farias de Carvalho, como bom poeta que é, entende que a atitude do poeta em face da poesia é só uma: revelar um conjunto de situações e de valores em termos de expressão verbal, não importa sob que condições de forma, de conteúdo, de arquitetura poética. Esse é que é o poeta perfeito, não poluído pelo dogma, não desumanizado pelo preconceito temporal, não fossilizado pela casmurrice vegetativa.

MARIO YPIRANGA MONTEIRO, em Pássaro de Cinza

 

Farias de Carvalho é um pescador debruçado sobre a superfície silenciosa, desbotada do rio da memória. Seus poemas têm ressonâncias supranaturais, evidências da dimensão transcendente do ser humano.

TENÓRIO TELLES, em Pássaro de Cinza, 2 ed.

 

Um dos traços mais característicos - e por isso mesmo fundamental – na poesia de Farias de Carvalho, é a autenticidade.(...) Farias de Carvalho não esnoba (perdoem o neologismo) com a poesia. Não trapaceia. Não finge (...) Não escreve versos por mero entretenimento, mas quando sente necessidade de fazê-lo; de vir a público para reatar com este o diálogo que, há algum tempo, vem mantendo através dos seus poemas inflamados.

ARTHUR ENGRÁCIO, em A berlinda literária, Prefeitura Municipal de Manaus, 1976

 

 

Encontrei a nova edição de Pássaro de cinza no Aeroporto, de volta ao Rio. Era 28 de dezembro de 2.000, o avião lotado dos que vinham para o Reveillon (...) E eu voltava, continuava, continuava lendo, relendo, o poeta, o professor Carlos Farias Ouro de Carvalho e vi os 35 anos se passando, desde que o vi pela última vez, no Colégio Estadual do Amazonas. (...) Farias faz parte de minhas mais antigas leituras, me deu aula de vida, de alegria, de charme, de dignidade e nobreza. Ninguém era tão elegante quanto ele, no gesto largo da mão gorda, na inclinação da face, na inflexão da voz, nas metáforas exatas, Farias cantava as aulas, declamava, não reclamava, (nunca nos repreendeu), (...) me ensinou a Poesia, a Ousadia, a Superação, ele foi um pai, um amigo, e um exemplo, um grande exemplo de educador, no mais elevado sentido desse incômodo e errático termo, e hoje escrevo estas notas, quase com lágrimas nos olhos, vindas de longe, do tempo em que Farias exercia sobre a minha consciência de adolescente um papel mítico, imortalizado na arquitetura de seu livro Pássaro de cinza, dedicado ao Dr. João Veiga, meu médico da infância e adolescência triste e doentia, solitária e incompreendida, Veiga na sua bela casa da Getúlio Vargas, casa que não mais deve existir, aliás nada mais existe, tudo desapareceu no fundo da noite dos anos, e se, na hora de minha morte, as imagens de minha vida se projetarem na minha consciência que se extingue, virá como o pássaro de cinzas de Farias de Carvalho, o Professor.

ROGEL SAMUEL, em http://www.geocities.com/ROGELSAMUEL/farias.html

 

 

 

Inês Sarmet

s/foto do acervo do escritor Francisco Vasconcelos, que aparece retratado à esquerda

(lançamento de Pássaro de cinza, 1957) 

 

 

BAÚ VELHO

 

No baú velho do inconsciente

mexendo papéis antigos

achei um mapa de sonhos.

 

Pedi emprestado ao tempo

as minhas mãos de menino,

sentei num chão de memórias

cruzei as pernas cansadas

abri a caixa de armar

falei de novo com o tempo

pedi as pedras esparsas

juntei o quebra-cabeça

bati o pó e a saudade

e comecei a jogar.

 

Num balet de simetria

as minhas mãos de menino

foram reconstruindo

em sonho, mapa e distância

a geografia física da infância:

 

Ladeira do Mercado, pedras soltas,

o mundo todo girando, rodando e rebolando

dentro da meia rasgada;

quebrando vidraças, subindo as calçadas,

o mundo todo, inteirinho,

amassado, sacudido

debaixo dos pés do time.

 

Trapiche antigo, molecada nua,

dos Barés, da Miranda, dos Andradas,

até os moleques que moravam mesmo

num batente qualquer - de qualquer rua.

 

Saltos ligeiros, corpos gotejando

pingos de rio e pingos de desejos:

fúria que vinha inconsciente e pura

nas estranhas e novas sensações

das primeiras nervosas ereções.

 

Quintal cheio de sol

linha zero esticada

mão ligeira melada

espalhando cerol.

 

Banda de asa no ar,

braços fortes colhendo.

Rabo e linha, quedooo!

bota outro medroso...

 

Velha praça da Igreja dos Remédios

do Monsenhor Oliveira e do Mané Sacristão;

missa chata aos domingos, logo de madrugada,

- as beatas rezando sempre a mesma oração.

 

Mané doido mascando

Monsenhor celebrando

os moleques roubando

o vinho e o sagrado pão.

 

Mas, estão faltando pedras,

como é que eu vou trabalhar?

As mãos tristes do menino

estão querendo parar

- cansadas de tentativas

cansadas de jogo inútil.

 

Acho que o quebra-cabeça

vai ficar mesmo incompleto.

Sempre um espaço a sobrar,

sempre uma pedra a faltar.

As mãos gastas do menino

já não podem continuar.

 

Estão paradas no tempo

cheias de pedras lisas,

de pedras feitas de nada

que não servem para jogar.

 

Estão paradas no tempo!

 

Ah! Tempo, tempo malvado,

tempo, você me enganou:

 

Pedi o jogo emprestado

pedi as mãos de menino

mas juro que não sabia

que você empresta sempre

cobrando um juro tão alto!

 

Vou fechar meu baú velho.

Carregue as caixas de armar.

- Leve as ruas, leve os dados,

leve as pontes, leve as bolas,

leve as torres dos castelos,

leve tudo, tempo, leve.

Só quero que você deixe,

impressas aqui neste mapa

de sonhos e de lembranças

as mãos gastas do menino

que já estão ficando longe

sujas de ocasos de infância

sujas de você também.

 

Mas não me cobre este juro,

você sabe muito bem

que eu já não sei mais chorar!

 

(Transcrito de Pássaro de cinza, 2ed.)

 

*

 

SONETO SEXTO DA INFÂNCIA

 

 

A PRIMEIRA NAMORADA

 

Como pássaros brancos que voltassem

de uma estranha região de coisas mortas,

as tuas mãos, Teresa, em meus cabelos

vieram ninhar saudades esquecidas.

 

Deixa eu tê-las nas minhas. Vamos juntos

passear velhos domingos de outros tempos,

fazer a turma toda roer de inveja

quando eu passar contigo pela praça.

 

Repetiremos tudo novamente:

- eu, orgulhoso, comprarei sorvetes

com os dez mil réis contados da semana;

 

ficaremos depois no velho banco

sem dizer nada, nossas sombras juntas

como duas saudades que se achassem!

 

(Transcrito de Pássaro de cinza)

 

*       

 

MENINA DO MEU SILÊNCIO

 

Menina do meu silêncio

pousada em gesto abstrato

sobre a palavra defunta

que morreu sem ter vivido.

 

Além da estrutura frágil

do minuto não chegado,

de que estranha tecitura

fiaste a rede do sonho.

 

Onde me pescas do fundo

do mais fundo do meu ser?

- menina do meu silêncio

 

há tantas crianças mortas

dentro desses homens vivos

por que me prendes a mão?...

 

(Transcrito de Pássaro de cinza)

 

*

 

AO IRMÃO AGOSTINHO CABALLERO MARTIN,

NO SEU REGRESSO

 

Como vieste,

foste,

cavalgando uma estrela.

 

A mesma que nos mandavas buscar pelo crepúsculo

quando a noite acendia os seus mistérios

e urdia na pele do silêncio

o diálogo entre o pátio e os teus anjos,

os mesmos, .

exatamente os mesmos

que te levaram de volta para o REINO

por que te havias cumprido e te bastado

a ti,

e ao mundo.

 

Como vieste,

foste,

cavalgando uma estrela.

 

A mesma,

exatamente a mesma

que não achávamos nunca

porque o mundo vendava os nossos olhos

e não sabíamos

que ela estava no pátio e não no céu.

 

Como vieste,

foste,

cavalgando uma estrela.

 

Agora sim,

será certo e tranqüilo procurá-la

nos rebanhos do azul pelo infinito.

 

(Transcrito de Seleta Literária do Amazonas, de José dos Santos Lins,

Edições Governo do Estado do Amazonas, vol. V., 1966)

 

 

*

 

­ACORRENTADO DE SILÊNCIOS VELHOS

 

Acorrentado de silêncios velhos

meu grito se fez lua, e me passeia

vestido nas roupagens dessas noites

onde pastam meus sonhos como ovelhas.

 

Às vezes, pendurado dessas horas

que se acendem de faces e de bocas,

neste ofício de mago e serralheiro

rompe algumas algemas, e, - quem sabe?

 

por um cochilo desses anjos negros

inventa e monta essas palavras todas

que me batem no peito como patas.

 

Essas palavras que me chegam, fiapos

de lua e sangue e carne do meu grito

acorrentado de silêncios velhos...

 

(Transcrito de Pássaro de cinza, 2ed.)

 

*

 

NOTURNO, QUASE CANÇÃO,

QUASE COMEÇO DE INVERNO

 

Para Dadi, minha esposa

 

Pois é, amor, até que não sentimos

esse tempo que o tempo andou gastando em nós...

olho-te à mesa, as brancas mãos pousando como pássaros,

servindo a vida nossa de cada dia,

afagando as crianças, ou ralhando agitada

pela sublime desordem de nós todos,

pela adorável incivilidade com que nos portamos

e descubro afinal que não consigo

ter outra imagem tua, que não esta,

como se tudo, antes que nós fôssemos,

já fosse em nós:

a casa, a mesa, a roupa pelo arame,

os meninos saindo para escola

e tu, em tudo, em cada canto ou sala,

tu, imagem; presença, gesto, fala,

como se tudo fora sempre assim,

sem nenhum ontem, apenas este hoje,

nós dois, nós cinco, nos amando, brigando,

sem nenhuma noção de tempo algum passando.

 

Olho-te,

e não consigo lembrar-me sem ti,

como se houvera vindo para a vida

como sou, e te encontrado a ti

como és, assim, mãe dos meus filhos e minha,

já com os cabelos brincando de inverno

inaugurando os primeiros luares;

 

Olho-te,

e redescubro a cada vez,

este gosto de eterno nos teus olhos,

esta certeza plena de ser nada,

nada ter sido antes, sem a bússola

que clareia horizontes no teu riso;

 

Repara amor, como os velhos abismos

queimaram ao simples toque dos teus dedos...

 

Ouve:

 

o velho ar do nosso chão de acácias

tecido em pura luz para a alquimia

do nosso outono tecido de crepúsculos...

 

Um dia,

as crianças irão, (como vão para a escola,

como um dia qualquer)

para as aulas da vida,

armados de ternura desse amor profundo

urdir os seus amores e construir seus mundos;

 

Nós dois,

como flores de sons, guardaremos seus risos

e embalaremos,

à sombra das orquídeas derradeiras

nossa morna saudade em pó de sono

tintos os dois do ouro dos ocasos

até que, de repente,

mansamente,

grave clarão, a grande luz nos trague

e novamente,

pássaros,

ventos,

geografia serena de lembranças,

reintegremo-nos ao sopro da Verdade

e passemos a arder, como cedros antigos,

nas lareiras serenas da saudade...

 

(Transcrito de Seleta Literária do Amazonas, de José dos Santos Lins,

Edições Governo do Estado do Amazonas, vol. V., 1966)  

 

 

Inês Sarmet

s/foto de acervo do escritor Francisco Vasconcelos

(Lançamento de Pássaro de cinza, 1957;

Farias de Carvalho à direita e, ao centro, Jorge Tufic)

 

 

 

FARIAS, Elson.  Imagem.  Manaus, AM: Conquista, 1976.  79 p.  21x27,5 cm.  Capa C. Barroso. Ilustrações: Álvaro Páscoa. Patrocínio da Academia Amazonense de Letras. Apresentação de Djalma Batista. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Vasconcelos.

 

 

         VILANCETE DOS TRÊS RIOS

 

        Um remanso de panema
        poesia nada pequena.

        Entre rios, encachoeirado,
        desce entre um delta intrincado,
        desce vazio de peixes,
        desce deserto de pássaros,
        é rouxinol de sonora
        glória maior que a dos homens,
        Rio Negro mar de estrelas
        quando a noite vem sem lua
         corre a igara serena,
        um remanso de panema
        poesia nada pequena.

        Já outro é de festa imensa
        e de compleição imensa,
        rico de peixes e povo
        de pássaros sempre novo,
        a cada dia que passe,
        a cada dia que vença,
        Solimões rio que desce
        sob o sol duro, dourado,
        ao som de uma brisa amena,
        um remanso de panema
        poesia nada pequena.

        Depois os dois se debruçam
        amplos sobre um palco aberto,
        celebram o eterno anelo
        das águas negras, das águas
        e das águas amarelas,
        misturam-se após o diálogo
        amazônico, Amazonas,
        mar Dulce em delta de amargo
        sobre o mar, canção suprema,
        um remanso de panema
        poesia nada pequena.

       

Página ampliada e republicada em maio de 2017

 

 



 

 

 
 
 
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