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POETAS DO AMAZONAS
Coordenação: Donaldo Mello e Inês Sarmet
Ilustração de Inês Sarmet |
ALENCAR E SILVA
O poeta e cronista Joaquim de Alencar e Silva nasceu em Fonte Boa, Amazonas, em 1930. Ainda bem jovem mudou-se para Manaus, para dar prosseguimento aos estudos. Depois, passou a morar no Rio de Janeiro (onde ainda reside), tendo concluído naquela cidade o curso de Ciências Jurídicas e Sociais. É membro da Academia Amazonense de Letras e de sua obra poética poderiam ser destacados: Painéis (Manaus, 1952), Lunamarga (Manaus. 1965), Território noturno (Rio de laneiro, 1982). Sob Vésper (Manaus. 1986). Sob o Sol de Deus (Manaus. 1992), Ouro, incenso e mirra (Manaus, 1994) e Solo de outono (Manaus, 2000).
“Seu livro (Solo do outono) é uma lição de fundo lirismo e de domínio sobre as formas e os ritmos que caracterizam toda grande poesia, essa poesia que esplende em composições como Um bandolim passeia pela tarde, Desce a noite no vale e as sombras cantam, Era um cavalo só ossos, Para Antísthenes Pinto, Alvas de sol, Quanto tempo busquei veladas fontes, E penetrei em mundos paralelos, Para Jorge de Lima ou Para Edgar Allan Pöe. Sua poesia, a um tempo tensa e comovida, é uma flor quase impossível nos dias que correm, pois está além da miséria espiritual e da usura que nos acuam” . IVAN JUNQUEIRA
“A obra poética de Alencar e Silva faz parte de uma tradição que tem no sentido do sagrado e conteúdo existencial suas marcas definidoras. Consciente de sua impotência diante dos descaminhos do mundo e seu "devir" permanente, o poeta se recolhe e faz de sua arte canal para o diálogo que intenta com o homem e com o transcendente. Cioso de seu ofício, constrói uma poesia límpida, pura e pungente, eivada de ressonâncias metafísicas e intensa musicalidade. Solo do Outono é seu canto crepuscular: Fez-se noite no vale e agora é a hora/de recolher ao ninho o coração/ entre as notas longínquas da canção/ que em doces vozes o embalara outrora/ / Vão-se os últimos pássaros do outono./ Fecha-se a noite. E já me apaga o sono. Mas fica essa canção de saudade - testemunho de seu estar-no-mundo”. TENÓRIO TELLES
“ALENCAR E SILVA é um Midas admirável. Moderno. Tem o Dom mágico de transformar, não no ouro que não tem importância para ele, mas em poesia tudo aquilo que toca. Respira poesia, e é dela que o mundo de hoje mais precisa, porque sendo mescla de prazer e dor, é sobretudo natureza, amor, vida, é Deus que vem para dar um novo alento ao mundo em rotação.”
ARIMATHÉA CAVALCANTI
Ouvir “Solo do outono”, do poeta Alencar e Silva, é entrar num território da liberdade onde se leva a efeito intenso jogo de ritmos e timbres. As palavras valendo quase tanto pelo que significam quanto pela posição que ocupam no texto-linguagem lírica, que se ilumina de imenso. Versos que cintilam, contagiados pela essência da beleza que deles transparece.
Joaquim de Alencar e Silva: um único tempo, um único espaço possível e uma única categoria humana, exercitada menos no ato de fazer poemas que na forma e no rito de conviver com as coisas, os lugares e as pessoas ... Ecos do saudoso Clube da Madrugada, poesia e música num “Território noturno”, exprimindo extrema sensibilidade e delicadeza. Transcendendo da própria poesia pela ressonância que causa ao leitor.
DONALDO MELLO, na madrugada de 28 de março de 2006
SONETO DE EVOCAÇÃO
Que me fez evocar tua face ausente
e teus olhos e encantos já mudados
e cantar este canto em que ressurges
esculpida em martírio e solidão?
Foi a flor que colhi sem cheiro algum?
O som que me chegou anoitecendo?
A lua que lembrando uma outra Ofélia
me fez buscar tua face de afogada?
Pobre amada, o mistério se desvenda
e se faz claro como o fio de prantos
que abre rios de luas em teu rosto:
esta canção nasceu de tua presença
de fonte dolorosa e ave ferida
que canta enquanto mais lhe punge a vida.
(Transcrito de Território noturno: análise interpretativa, de Arimathéa Cavalcanti, Coleção Madrugada, 2003)
Um bandolim passeia pela tarde
II
Um bandolim passeia pela tarde
de carnaval. No olhar de Colombina,
ao longe, alheia-se um Pierrot. É tarde
para escutar-lhe a música divina.
Tudo ficou naquela antiga tarde.
O som da voz e a música em surdina
se esvaindo. Uma vela que em vão arde
e bruxuleia e, trêmula, se fina.
A mascarada rompe de repente
cindindo a tarde com seus sons quebrados.
E ao ar se eleva com seu ritmo quente
o som pagão dos corpos orquestrados.
E eis que o verão arrasta, em vivas cores,
Anas, Teresas, Conceições, Dolores.
(Transcrito de Solo do outono)
Soneto de espera ou o 1° da morte
De espera e espera sofro-te em meu canto,
em meu verso e nas coisas que te anseiam.
E mais sofrera se te não sonhara
nem crera em tua vinda, anjo noturno
que virás sobre o mar - pássaro, estrela
ou rosa a se elevar na noite pura -
sem outro anúncio a preceder-te, além
do teu hálito fresco sobre o vale
e esta certeza para além do sonho
de que teus olhos de mistério e flamas
descerão de repente em minha espera
e me destruirás para salvar-me:
que os noturnos jardins florescerão
e nos ventos da noite fugiremos.
(Transcrito de Lunamarga)
Sob Vésper
Antes que o grande vendaval me afaste
do teu corpo de pássaros e rosas,
deixa que eu cante uma canção sonâmbula
sob as luas ciganas de teus olhos.
Antes que o grande vendaval me arraste,
deixa-me ter-te como um lírio aberto
na hora crepuscular da tarde ardente
numa varanda toda de jasmins.
Antes que o grande vendaval quebre a haste
das rosas últimas e só espinhos
cerquem-me a fronte - deixa que me mirem
teus olhos, como sempre me miraste.
E eu canto, amor, uma canção de outono
para inundar de pássaros teu sono.
(Transcrito de Sob Vésper)
Para Jorge Tufic
As pontes já ruíram mas teu verso
inda as sustém erguidas no ar de sonho
em que celebras tua presença abstrata
num chão que se transmuta a cada passo.
As pontes já ruíram mas as águas
que as banham são as mesmas em que um dia
pendeu Narciso a face para a morte.
As pontes já ruíram mas o sopro
longínquo de uma flauta inda apascenta
o habitante das tardes transitórias.
As pontes já ruíram mas teu verso
inda as perpassa num galope - e à face
das rosas em suas bordas abismadas
passa o clarão veloz das madrugadas.
(Transcrito de Solo do outono)
Era um cavalo só ossos
Era um cavalo só ossos
preso ao moinho sinistro,
a arrastar os seus destroços
como se fosse outro Sísifo,
jungido à pedra que mói
o santo, o covarde, o herói.
Esse cavalo só ossos
moía os próprios destroços
girando a sinistra mó.
Movia como moía
dia-e-noite-noite-e-dia
o coração feito pó.
Era um cavalo só pó
ou sombra de um homem só.
(Transcrito de Solo do outono)
PAISAGEM
Na tarde ampla e calma
o sino é um óleo divino
ungindo-nos a alma.
(Transcrito de Território noturno: análise interpretativa ,
de Arimathéa Cavalcanti, Coleção Madrugada, 2003)
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SILVA, Alencar e. Crepuscularium: poesia. Fortaleza, CE: Edições Realce Editora e Ind. Gráfica, 2006. 60 p. 18,5x26 cm. (Coleção de textos Madrugada, 9) ISBN 85-8921550-4 Ex. Biblioteca Nacional, doação da família de Francisco Marques de Vasconcelos Filho.
CINCO HAICAIS
(Para Arimathéa Cavalcanti)
É assim (contemplai):
a gueixa dança sem queixa
no espaço do haicai.
*
Folha seca ao vento,
a borboleta amarela
vai sem direção.
*
Águas represadas?
Não. As mágoas, se em mim trago-as,
são só vagos nadas.
*
Este é todo o tempo
dado aos meus e aos ombros teus
para erguer o templo.
*
Descendo-lhe os veios
o olhar reinventa o luar
no vale dos seios.
CANÇÃO DAS SOMBRAS
(Para Castro Alves)
Deslizam
brancas sombras
nas calçadas,
nas noites
castroalvinas
ressurrectas.
São sombras
— Lúcias, Dulces
e Marietas
que voltam
nos insones
madrugadas.
II
Há vozes
sussurrantes
nas sacadas
Rimando
dor de amor
e ânsias secretas:
Histórias
de Romeus
e Julietas,
à glória
e à dor do amor
ressuscitadas.
SILVA, Alencar e. Poesia reunida (1965-1986). Três livros de poemas. Manaus, AM: Edições Pixirum, 1987. 207 p.14,5x22 cm. (Coleção Encontodas Águas, vol. 1) Capa: Van Pereira. Apresentação L. Ruas. Ilustrações: Afrânio de Castro e Van Pereira. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Marques de Vasconcelos Filho.
ELEGIA DE DESENCONTRO
De repente na curva azul da elíptica
nossos semblantes se descontraíram
sob a aparência de uma angústia extrema
e algo em nós preexistente e sábio
acendeu sua lâmpada e mostrou-nos
ao nível claro-escuro da consciência
a absurda impossibilidade da acoplagem:
embora frente a frente num instante
esse instante-relâmpago fixara
com um flash da eternidade
a tragédia sem nome a que estamos votados:
cruzarmo-nos numa órbita de espanto
e para sempre ou outra vez quem sabe
nossas cápsulas
semiparalisadas
em mútua e muda contemplação
nossas cápsulas
sob o impulso noturno de seus comandos
mergulharem
mais uma vez ou para sempre adeus
no circuito perpétuo espaciotemporal.
SILVA, Alencar e. Lunamarga. 2ª edição. Manaus, AM: Casa Editora Madrugada; Legisbancos Editora Ltda, 1982. 116 p. (Coleção Madrugada, vol. 2) 14x21 cm. Capa de Álvaro Páscoa e ilustrações de Afrânio de Castro. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Marques de Vasconcelos Filho.
POEMAS MÍNIMOS
6
Provisória é a casa
ou a residência (bem o sabes)
e nada é definitivo:
nem o bem nem o mal
nem os perigosos caminhos do pensamento
nem a caminhada tranquila
para um concebível fim.
Um dia
nós entramos alegremente em nosso quarto
e deparamos nossa inocência
desfigurada
diante do espelho.
SILVA, Alencar e. Sob o sol de Deus. Poesia. Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1982. 72 p. 13,7x20,2 cm. Texto da "orelha" do livro por Astrid Cabral. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Marques de Vasconcelos Filho.
ROMANCE
Por toda a longa tarde iluminada
lado a lado fizemos o caminho
e por luas e sóis vamos seguindo.
Chegará todavia a hora sem margens
em que não veremos a nós mesmos,
mas àquilo que formos nós um no outro.
Pois já não te verás, mas só a mim,
e eu já não me verei, mas só a ti.
E indagarás, como a buscar-te a esmo,
se algo de ti restara além de mim,
e indagarei, buscando-me a mim mesmo,
se algo de mim restara além de ti.
a refletir um no outro a própria paz.
SILVA, Alencar e. Solo do outono. Manaus, AM: Editor Valer, 2000. 80 p. 14x21 cm. Capa e projeto gráfico: Marcicley Rego. ISBN 85-86512-51-6. . Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Marques de Vasconcelos Filho.
POR ENTRE AS FACES DE UM POLIEDRO
Por entre as faces de um poliedro
como entre as fases de um pesadelo
pânico apelo nas multidões
vou decifrando meu próprio rosto
no amargo gosto das decepções.
Busco a mim mesmo claro e distinto
e o labirinto com seus espelhos
a cada volta me incita a ver
num outro rosto de traços graves
o enigma e as chaves do vir-a-ser.
Busco-me a face definitiva
e não a esquiva de uma ilusão.
Dentre os espelhos quem me oferece
a taça ou a prece, a espada ou a mão?
SILVA, Alencar e. Ouro, incenso e mirra. (Poema em 5 segmentos e 50 sonetos). Manaus, AM: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1994. 83 p. 14x21 cm. "Orelha" do livro por Yacilton Almeida. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Marques de Vasconcelos Filho.
PARÁBOLA DOS TALENTOS
Um homem rico chama os empregados
e empresta aos mais capaz cinco talentos,
dois ao outro e um único ao terceiro.
O primeiro, dos cinco faz mais cinco;
o segundo, dos dois produz mais dois
e o terceiro devolve-lhe o talento
dizendo que, com medo de perde-lo,
deixara-o enterrado. E o homem rico
manda dar ao primeiro dez talentos;
ao segundo, os seus dois e ainda mais dois,
e ao terceiro, retira-lhe o talento
e dá-o ao que tem dez para que o faça
frutificar multiplicado ao vento
e não fique enterrado esse talento.
SILVA, Alencar e. Território noturno. Manaus, AM: Casa Editora Madrugada; Rio de Janeiro:Legisbancos Editora Ltda, 1982. 94 p. ilus.. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Marques de Vasconcelos Filho.
NATUREZA VIVA
Numa ampulheta
o tempo escorre
sua clara areia,
enquanto a um canto
lustrosa aranha
tece sua teia.
PORCELANA CHINESA
Eram treze barcos de ouro
sobre o verde azul do mar
(sob as luzes de um sol louro
em seu róseo despontar)
Eram treze barcos de ouro
todos treze a navegar
Eram treze barcos de ouro
que vogavam sobre o mar
Eram treze barcos de ouro
sem ninguém a os comandar.
SILVA, Alencar e. Sob Vésper (poesia). Manaus, AM: Edições Puxirum, 1986. 78 p. 14x21 cm. Capa: arte-final de Van Pereira sobre o desenho de Hahnemann Bacelar. Ilustrações: Van Pereira. Retrato do autor: Anisio Mello. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Marques de Vasconcelos Filho.
O CAVALO DE BRAHMA
É um cavalo claro como a neve.
E com suas crinas de cristal e vento
ele corre as manhãs e as tardes, leve
hausto de paz e claro pensamento.
É um cavalo claro como deve
ser um cavalo sem nenhum tormento.
Um cavalo de luz e luar e neve.
De cascos de ouro e de cristal e vento.
Ele trota sem pressa e sem alardes
nas horas claras, verdes, destas tardes,
com a elegância e o repouso dos menires.
Percorre a Terra toda. E vai. E volta
Ede seu falo de outro ardente solta
o mijo astral de mágicos arco-íris.
SILVA, Alencar e. Painéis. Poesia. Manaus, AM:s.e., 1952. 120 p. 13,5x19,5 cm. "Orelha" do livro por Guimaâes de Paula. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Marques de Vasconcelos Filho.
EM LOUVOR DO SONETO
Grades feitas de luz e de excelências,
Onde o Pássaro canta e o Astro explende,
És, — ó ninho doirado das essências! —
A luz que à Luz amão da Luz suspende!
No teu colo de pluma e confidências,
O Artista, em ânsias, quanta vez ascende
Astros e sóis em simples reticências,
— Gaiola de ouro que universos prende!
Tens o poder das sínteses supremas!
E és penachos de luz e és diademas,
O Pensamento abrindo em resplendores!
E, — ó ninho d´Arte! — és o clarão risonho
Que se faz sol e amor e glória e sonho,
Dentre um grilhão de plumas e de flores! ...
Página ampliada e republicada em março de 2017
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