ESTE EXISTIR
A quem interessar possa
o meu sentir
meu solipsismo
ou minha logorréia
ou este afundar-se
em cismas intransponíveis
nas crateras
dos meus instintos
informo:
que este existir não seja
apenas versos,
não seja apenas golpes
desferidos sobre a alma.
RISCO, RABISCO, LAMBISCO
Risco, rabisco, hesito:
existo, descubro-me à-toa,
na noite,
resguardo-me de obrigações
para concentrar-me neste mister,
perambuletrar,
penitenciar-me pelas desvirtudes,
por não inventar o suficiente
nem ter o poder de traçar o texto
claro e preclaro,
enluarado e quase semiparnaso.
Risco, rabisco, lambisco;
mas não é nada disso:
desmancho, apago, reviso,
rasgo, dano-me,
prof iro objurgarções...
Mesmo pisoteado,
Levanto a cabeça
e não repreendo o mundo:
brigo comigo mesmo.
Os automóveis passam,
os aviões e satélites sobrevoam o planeta
e eu continuo pelejando,
continuo lavrando meus papéis e
sobrevivendo com pequenas colheitas.
Extraído de O Devaneio é o Cetro do Poeta. 3 ed. Macapá: Tarso Editora, s.d.
FUGA PARA O NADA
Eu mesmo elaborei
todos os meu enclausuramentos
e participei do silêncio
nos interstícios das noites.
Em longos aprendizados
fiquei sabendo
que os vidros mais cortantes
não mais rasgam meus espíritos.
Há em mim, ainda,
pedras que não foram partidas
e sementes aflitas por primaveras.
E este simulacro de proscrição,
que me faz temer cintilações,
luzes de neônio e outras claridades
é o assassino inviável
dos pálidos desejos de amor à vida.
Dias metálicos
passam sobre meu ser,
esmagam meus rumos,
meus descansos;
e a noite pedante
fotografa com infravermelho
o meu esqueleto compulsório.
LONGE DE CASA
Mano,
eu não merecia tantas pseudo-utopias
(afinal, somos de um mesmo
e torrencial sangue,
da mesma água-Mearim)
e esta cidade de luz que me deste
é hoje um pesadelo redivivo.
Não,
Eu não merecia uma cidade inteira.
O bairro do Trem, onde moro,
é uma desgovernada locomotiva
de madeira, alvenaria,
fumaças, ossos e cachorros.
É o tempo das letras:
meu desjejum,
as refeições principais
de sonhos e fantasias,
as madrugadas aziagas e cheias
de hidróxidos de alumínio
e hipocondrias gástricas.
E vivo momentos de intimidade
com as carapanãs,
que beijam meu corpo com agulhas,
ofendem meus espíritos
e ainda zunem marcialmente
às minhas ilusões,
fomes e desastres cotidianos.
LUMIAR
No ininterrupto trabalho
de elaborar-me, detecte
a primeira pedra do meu organismo
- ainda projeto de Deus.
E hoje, nas minhas reflexões
metabolizadas, há presença de répteis,
espíritos de água, gases e enxofres
em todas as densidades.
Essas alucinações do tempo
auxiliam as pedras mais consistentes
a esmagar a composição deste corpo
provisoriamente encarcerado.
Extraídos de Existencial do Pássaro Migratório. Acapá: Tarso Editora, 1998.
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