SABINO ROMARIZ
(1871-1913)
Poeta e jornalista, nasceu em Penedo, Alagoas, no dia 25 de março de 1873, filho do poeta João de Almeida Romariz.
CÉU
Ninguém, ninguém, ao teu azul resiste,
Céu do Brasil, bendito e peregrino;
Onde feito de estrelas, como um hino,
Fulge o Cruzeiro de fulgor em riste.
É donde o sol aurifulgente assiste
Ao murmúrio das águas cristalino;
— o sol, um louro e rutilo beduíno,
Longe da lua, pesaroso e... triste.
Para cantar-lhe essa agonia, afino
Pelas florestas minha lira êxul,
E pelas aves o estro adamantino.
E, olhos cravados neste céu do sul,
— Bardo e soldado, canto o meu destino
Vivido ao pálio de teu céu azul.
In: O MALHO, Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1910.
AS TRÊS GEMAS
Abriu-se, um dia, o pórtico do oriente.
De cortinas de sangue e franjas de oiro
E o fidalgo perfil tremeluzente
Do sol apareceu, pomposo e loiro.
Su'magestade, el-rei, foi, nesse dia,
Examinar o erário das campinas
E estacou, sem saber o que sentia
— Ante três cintilantes pedras finas.
Vendo a primeira — deslumbrado, disse:
"Olhos-de-mãe choraram com certeza,
"Talvez os... da Senhora da Piedade;
"És a dor e a meiguice,
"O martírio e a bondade.
"És um mimo de graça e de pureza,
"Serás a Estrela Branca da Orfandade.
Depois disse à segunda: "És incorruta
"E tens a cor do mar.
"És o porto seguro de quem luta
"E o nauta chama-te — Anjo tutelar.
"Constróis, como a águia, o ninho nos rochedos
"E põe-lhes, à entrada, rútilos dragões:
"Feliz de quem penetra os teus segredos
"E consegue enfrentar tuas visões;
Feliz de quem te alcança
E teu argênteo raio nunca perde,
"Ó luminosa Estrela da Esperança,
"ó astro luci-verde!
Disse a terceira: "Há em tua luz,
"A diamantina luz da Redenção.
"Teu brilho sanguinoso
"Lembra a Agonia imensa de Jesus.
"Tens o poder supremo e portentoso,
"Estrela da Aflição!
Desde êsse dia, quando um órfão chora,
Sem mãe e sem irmã
E, cabisbaixo, vai de estrada a fora
Sem um beijo sequer de alma cristã,
Uma estrêla debruça-se na aurora
E dá-lhe aquêle alento, que vigora
— A Estrela da Manhã!
Quando uma virgem, trémula, suspira,
Esquecida de si, desfeita a trança,
Curvado o níveo colo ao frio açoite
Da mágua em que se escalda,
— Encrestada no céu da meia-noite,
Erguendo a vista, vê — côr de esmeralda,
— A Estrela da Esperança.
Quando o assassino, o próprio matricida,
O traidor, o ladrão:
Quem cometeu só crime tôda a vida
E só tem o remorso por irmão;
Ergue, afinal, o olhar lacrimejante
Às paragens intérminas da Luz,
Mal vem tombando a noite na amplidão,
Vê refulgir, sangrenta, lá distante,
Com as chagas do peito de Jesus,
— A Estrêla do Perdão!
REDENÇÃO DE JUDAS
Tibério — o imperador, era um velho devasso,
Cujo olhar profanava as estrêlas do Espaço.
— Um leopardo imperial de catadura rude.
Que incutia pavor à inocência e à virtude,
Que empestava os jardins, as crianças, as verbenas
0 prestígio de Roma, a poesia de Àtenas
E as glórias nacionais.
A Judéia, cativa
Maravilha, — oriental cálice de sensitiva,
Definhava arrastando os grilhões mais ingratos
Das galés, cujo algoz era — Poncius Pilatos —
O procônsul buscava um motivo qualquer
Para desafrontar a aversão da mulher,
Que o não podia olhar, sem atirar-lhe um insulto.
Pretende moderar-lhe o rancor — fôra estulto.—
Era desprezo atroz que Cláudia lhe votava
E êle iludia assim, martirizando a escrava,
A neta de Jacob; — reduzida e submissa
Gleba, donde o Jordão lágrimas espreguiça.
Agora, a antiga porta (hoje porta Antonina)
Fecha, no coração, essa tropa, que ensina
Patriotismo aos judeus, a vergastas e a lança.
Cláudia, em face de Pôncio, ergue-se altiva e avança
Desenvolvendo todo o seu ódio profundo
Em terríveis labéus. Chama-o de crápula imundo
E mercenário.
Êle ergue o gláudio, mas recua
E ela estende-se ali, no divã, quase nua,
Contemplando a sorrir, toda irónica e fátua,
A palidez mortal de Pôncio — uma estátua!
Fora escuta-se a voz grave das sentinelas.
As flores do Horto vão-se tornando mais belas,
À sutil viração do cheiroso Nizan.
As oliveiras têm uma fragância irmã
Dos aloés e do aloendro, aromáticos todos.
Brotam germinações putrefatas dos lodos,
Que mascaram, distante, o perfil do Mar-Morto.
Da noite o péplum traz místico desconforto
Às almas, que não têm a ninhagem da Crença:
E há, pelos corações, uma dúvida imensa,
Empolgante e fatal, que as consciências esmaga
E o espírito doi, como a brasa na chaga.
Entre o negro silêncio uma sombra desliza
E, mais alva que a neve e mais doce que a brisa,
Deixa no perpassar um bafejo divino.
Nisto alguém se aproxima e murmura: "Rabino,
És tu?" Disse Jesus: — "Que motivo te traz
Nestas horas de sono ao remanso da paz,
Onde fiquei a orar?"
— "Tu, Mestre, só Tu podes
(Venho quase a correr do palácio de Herodes)
Só Tu podes salvar êste povo infeliz
— É voz geral e até mesmo o tetrarca o diz.
Lembra-Te, vê que Tu és sangue dos Macabeus.
Em nome de Teus pais, pela Pátria e por Deus,
Em nome de Mirjhan, Tu adoras, que eu sei,
Prega a revolução, Rabi, sê nosso... rei;
E Teu nome voará, como as coisas benditas,
D’alma dos Galileus até os Amalecitas.
"Vê, que nossos irmãos gemem todos, cativos,
Nesse abismo de dor, que não tem lenitivos."
"Homem, disse Jesus, fita o Azul, donde Eu venho
Em divina missão.
O meu triclínio é o lenho
Vergonhoso da Cruz. Meu cetro é a cana-verde.
Como é possível que Eu vos despreze e deserde
À conquista dos Céus?
Os diademas mesquinhos
Ah! não valem jamais a Coroa de Espinhos
Que me tem de cingir a desbotada fronte,
Antes mesmo que o sol quatro vêzes desponte.
Hão de ver oscilar, no alcantil do Calvário,
O meu corpo à mercê de qualquer legionário.
Eu vos venho remir a todos juntamente,
Desde Herodes até Lázaro o indigente.
"Vê como o ninho, para escutar-me, emudece.
Quando Eu passo, o olival balbucia uma prece
E Eu abençoo o ninho e abençoo o olival.
A Redenção será divina, universal.
0 tigre beberá luz na piscina enorme,
Donde ilumina o sol ao rebanho, que dorme,
Sonhando projeções infinitas, a rir.
Eu desprezo o esplendor humano.
Podes ir".
Judas ganhou dali, pela encosta escalvada,
A tuba consular já tocava a alvorada.
Dizem que, desde então, como um traidor foi visto
Judas; sempre a fugir da presença de Cristo,
Misantropo a vagar, triste, na solidão,
Como alguém que levasse, em plena face, um não.
Nunca mais que sorriu.
Ninguém pôde supor
A grandeza fatal de tôda a sua dor,
O desespero atroz daquele sacrifício.
Mas tudo fôra em vão, fôra tudo impropício!
E aquele hebreu, que tinha alma de seu avô,
Pela primeira vez, nesta vida, chorou:
Chorou por seus irmãos, pelo Mestre, por tudo,
E começou, daí, a vagar, mudo, mudo,
Em fundas reflexões o espírito submerso,
Como se a carregar sôbre o dorso o universo.
Mas não pôde recuar.
Viu-se comprometido;
Foi ter coos Fariseus e abafando um gemido
Apontou-lhes: — "Olhai como estou demudado.
Nada fiz: o Rabino é rijo como um fado.
"— Pois então, já que o quis, exclamaram, pereça".
E a sentença caiu na divina cabeça.
Quando Cristo expirou na grande cruz sombria,
Numa figueira além, Judas, morto, pendia.
Lutou como um herói, mas, na luta medonha,
Suicidou-se, por não suportar a vergonha.
Todas as gerações têm-lhe cuspido sôbre,
Mas a voz de Jesus, celestialmente nobre,
Continua a perdoar, há quase dois mil anos,
A vítima infeliz dos ultrajes humanos.
E ainda hoje, aquêle olhar de Galileu redime,
Em Espírito de Deus, ao espírito do Crime.
A figueira floriu por efeito da cruz
E Judas, pelo amor, fêz-se irmão de Jesus,
Página publicada em janeiro de 2016
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