TOLSTOI LUSITANO MOITA
Tolstoi Lusitano de Nóbrega Nunes Moita, 09.06.1919. Nasceu em Sá da Bandeira (Angola) — designação colonial da cidade do Lubango (Angola).
MÁKUA ANTOLOGIA POÉTICA 2. Sá da Bandeira, Angola: Publicações Imbodeiro, 1963. 61 p. Ex. bibl. Antonio Miranda
(TUNDAVALA)
Manhã de Agosto em festa, doce e perfumada.
Numa explosão de luz, o Sol — hóstia sagrada —
Vestia d'oiro em pó, por sob um céu de opala,
O oásis virginal, exul, da Tundavala.
Profanam o rincão enxames de turistas,
Criando ambiente hostil aos poetas e aos artistas...
Fugi dali, voei... E transportei comigo,
Para a mansão ideal do sonho e da quimera,
Aquele abrigo em flor, aquele ameno abrigo
De eterna fresquidão e eterna primavera.
Antes, porém, mau grado o movimento em volta,
Quedei-me, absorto, a olhar o quadro ímpar e belo:
Arrebatada a alma e o pensamento à solta,
O espírito enlevado e a inspiração revolta,
A água me aljofrou de perlas o cabelo...
E murmura caindo em franja delicada,
E refrangendo a luz em irisados tons,
Alia-se à paleta a musa enluarada,
Harmónica e subtil, ardente e apaixonada,
Que à Música preside e diviniza os sons...
E acompanhado já da gémea alma da minha,
Alheio à turba vil, que grita e salta e come,
Trepei lá acima, ao alto, em voo de andorinha,
A mitigar a sede e a saciar a fome...
E caminhando fomos, rumo do horizonte;
E um mundo original se abriu ali defronte,
Na virgiliana paz tocada de mistério...
Fendendo o esmalte azul do meigo Azul sidério,
Além perpassam asas, rémiges palpitam...
Aveludando d'oiro os montes, que suscitam
Divinas cortezãs em plácido repouso,
No lânguido torpor de um sonho voluptuoso,
Uma penugem loira, tépida e macia,
Que branda e fina aragem beija e acaricia,
à tamisada luz de um calmo entardecer,
Semelha, ao afagá-la esse hálito divino,
No doce palpitar, um seio alabastrino,
Na fulva maciez, um púbis de mulher.
Mas eis que se transmuda o fácies do terreno
(Que cataclismo aqui sucedido?):
Achei-me transportado ao período do Eoceno,
Me achei do Mesozóico ao pélago volvido!
São páginas perdidas, são páginas dispersas
Do livro mais antigo da história do Planeta:
Bizarras formações, tão estranhas, tão diversas,
Que as baptizaram já de «Ruínas de Pompeia»...
Evoco do Passado a fauna mais selecta,
A fauna sobre a qual o sábio curva a fronte:
Aqui, um Diplodoco, ali, uma Casea,
Além, um Brontosáurio, ao pé de um Tracodonte...
Mas fujamos daqui, deste universo extinto,
Que eu não professo, não, o culto das ruínas...
Sigamos mais além, eia! que eu já pressinto
Mais fundas emoções, titilações mais finas...
Não sei o que me atrai de estranho e de abismal!
Atiro-me, a ofegar, lá p'rá falésia, em frente:
E ei-lo, o Abismo imenso, a Fenda colossal,
Por onde se vislumbra um mundo evanescente!
Estranha aparição de assombro e pesadelo,
Terrífica visão de Dante ou de Doré,
Como isto tudo, oh! céus! é horrivelmente belo!
Não fora este ãécor um amoroso idílio,
Não fora tão gracioso este decote em V,
E eu julgar-me-ia aqui guiado por Virgílio,
E, certo, vira então, ao alto, sobre a Fenda,
Do Báratro fulgir a trágica legenda!
Mas já que a Tundavala, de lírica paisagem,
É toda ela um preito, um brinde, uma homenagem
ao Feminino eterno, ao culto da Mulher,
Corramos a fruir, d'além, daquela escarpa,
Lá donde nos vem o som de eólia harpa,
Os encantados céus que a Fenda nos sugere...
Aonde o Miguel Torga, aonde o Pascoais,
Aonde a lira d'oiro, aonde a inspiração,
Que venham exaltar, em versos imortais,
A Serra guardiã das tribos mucubais,
Como cantaram já o épico Marão?!...
Do alto deste rude e belo promontório,
Que nos dilata o peito e nos embarga a fala,
Abarca-se o que foi de antanho grande empório,
Todo o cenário imenso, infindo, da Bibala!
E como, à luz do Sol, que para o mar deriva,
Da Serra-abaixo esplende a larga perspectiva!
E vede-os, lá em baixo, os ínfimos carreiros,
Que, nos longínquos tempos viris da Ocupação,
Trilharam os heróicos, valentes pioneiros,
Que vinham demandar o inóspito Sertão...
E — gritos gigantéus de antiga convulsão —
Destacam-se à sinistra e à dextra, lá ao fundo,
A garra do «Maluco» e o pico do «Tolundo»...
E sob a apoteose do astro, na agonia,
O quadro é uma visão de fantasmagoria...
Vai alta a Lua, já. Volvidos à Cascata
— Agora, uma lustral e astral chuva de prata — ,
Eu só... só eu e... Ela (em imaginação...)
Na cósmica mudez da lírica soidão...
Fundidos no luar, diluídos na paisagem,
Não somos — Ela e eu — senão a pura imagem
Da linfa que desliza e a fronde que a ensombra,
Formando, em derredor, deliciosa alfombra...
Só nós, só nós os dois, no seio da Natura,
Neste recanto ideal em êxtase envolvido,
Sorvendo no silêncio os haustos da ventura,
Vogando na amplidão de um sonho indefinido...
E sob a nave agreste, cúmplice e pagã,
Trocámos, num arroubo, o «Beijo» de Rodin,
O beijo fecundante, o beijo afrodisíaco,
Que trespassou da Terra o seio genesíaco
E fez vibrar de amor todo o vergel de Pan!
Na quieta languidez errava, num consolo,
O penetrante olor da flor do «minhangolo»...
E nus inteiramente, inteiramente nus,
Vestidos de luar, do céu caindo a flux,
Cobertos de emoção, nimbados de poesia,
— Nós vínhamos d'Além, desse Primeiro Dia,
Que límpido brotou do âmago da Treva...
E assim, na Tundavala, edénico cenário,
Cenário só p'ra dois, ébrio da luz primeva,
Floriu, desabrochou, como de ignoto ovário,
Um par, um novo Par, gémeo de Adão e Eva!
Página publicada em setembro de 2017
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