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ERNESTO LARA FILHO

ERNESTO LARA FILHO

Poeta e cronista. Nasceu em Benguela no ano de 1922. Foi para Portugal, a fim de continuar os seus estudos, concluindo o curso de regente agrícola, na Escola Nacional de Coimbra.

Obra poética:  Picada do Marimbondo, 1961; O Canto do Martrindinde, 1963; Seripipi na Gaiola, 1970.
 

Poema da manhã

 

Os nossos filhos

Negra

hão-de trazer as ambições estampadas

nos olhos claros.

 

Os nossos filhos

Negra

hão-de trazer a vida à flor da pele escura.

 

Os nossos filhos

Negra

hão-de gargalhar o seu desprezo pelas Universidades da Europa

e hão-de rir-se dos que ficarem atrás nas classificações.

 

Os nossos filhos

Negra

hão-de ser belos

hão-de trazer nas veias o sangue mais puro e mais vermelho

das raças de Angola

e os seus peitos

hão-de chegar primeiro nas competições desportivas

da América, da Europa e do Mundo.

 

Os nossos filhos

Negra

serão os construtores, os engenheiros, os médicos, os

            [cientistas do Mundo que vem

 

Eles pisarão quem se lhes atravessar na frente

Eles hão-de fazer soar os "Boogie-woogies" de

                                      [Armstrong e Peters

nas "boites" de Paris, Londres, Moscovo e Nova Iorque

e não mais terão lugares secundários nas bichas de autocarros de Joburgo.

 

E principalmente

Negra

os nossos filhos

 

chegarão sempre primeiro

nas competições espirituais e desportivas

da Europa

da América

e do Mundo.

 

E principalmente

Negra

eles serão

OS NOSSOS FILHOS

 

 

 

Quando eu morrer

(para o Aniceto Vieira Dias e "Liceu" de "N'Gola Ritmos")

 

Quando eu morrer

eu quero que o N'Gola Ritmos

vá tocar no meu enterro.

 

Como Sidney Bechet

como Armstrong

eu gostarei de saber

 

que vocês

tocaram no meu enterro.

 

Lá no céu também há "angelitos negros"

e eu gostarei de saber

que vocês

me tocaram no enterro.

 

Se não puder ser

deixem lá

tocarão noutro lado qualquer

com lágrimas nos olhos

como naquela noite

em casa do Araújo

lembrarão o companheiro

das noites de Luanda

das noites de boémia

das tardes de moamba.

 

Ah! Quando eu morrer

já sabem

quero que o meu caixão

vá no maxibombo da linha do Cemitério

quero que toquem

a Cidralha

ou convidem a marcha dos Invejados.

 

É assim que eu quero ir

acompanhado da vossa alegria

bebedeiras seguindo o enterro

as velhas carpideiras de panos escuros

quero um kombaritókué dos antigos

que vai ser muito falado.

 

Não convidem mulatas
que sempre estragam tudo
Se vierem
não lhes vou rejeitar.
Cantem apenas
alguns dos meus poemas
até enrouquecer.

Ah! quando eu morrer
eu quero o N´Gola Ritmos
tocando no meu enterro.

 

 

Picada de marimbondo

 

          (Para o Pila – companheiro de infância)

 

Junto da mandioqueira

perto do muro de adobe

vi surgir um marimbondo

 

Vinha zunindo

cazuza!

Vinha zunindo

cazuza!

 

Era uma tarde em Janeiro

tinha flores nas acácias

tinha abelhas nos jardins

e vento nas casuarinas,

quando vi o marimbondo

vinha voando e zunindo

vinha zunindo e voando!

 

Cazuza!

Marimbondo

mordeu tua filha no olho!

 

Cazuza!

Marimbondo

foi branco que inventou...

 

Infância perdida

 

                   (para o Miau)

 

Nesse tempo, Edelfride,

Com quatro macutas

A gente comprava

Dois pacotes de ginguba

Na loja do Guimarães.

 

          Nesse tempo, Edelfride,

          com meio angolar

          a gente comprava

cinco mangas madurinhas

          no Mercado de Benguela.

 

Nesse tempo, Edelfride,

montados em bicicletas

a gente fugia da cidade

e ia prás pescarias

ver as traineiras chegar

ou então

à horta do Lima Gordo

no Cavaco

comer amoras fresquinhas.

 

          Nesse tempo, Miau,

          (alcunha que mantiveste no futebol)

          nós fazíamos gazeta

          da escola coribeca

          e íamos os quatro

          jogar sueca

          debaixo da mandioqueira.

 

Era no tempo

em que o Saraiva Cambuta batia na mulher

e a gente gostava de ver a negra levar porrada.

 

          Era no tempo

          dos dongos da ponte

          dos barcos de bimba

dos carrinhos de papelão

 

          Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!

 

Era no tempo do visgo

que a gente punha na figueira brava

para apanhar bicos-de-lacre e seripipis

os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires

que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.

 

          Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.

 

Mais tarde

vieram os passeios noturnos

à Massangarala

e ao Bairro Benfica.

E o Bairro Benfica ao luar

O poeta Aires a cantar

(meu amor da rua onze e seu colar de missangas...)

Tudo era bonito nesse tempo

até o Salão Azul dos Cubanos

e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.

 

          Foi então que a vida me levou para longe de ti:

          parti para estudar na Europa

          mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,

          meu companheiro mulato dos bancos de escola

          porque tu me ensinaste a fazer bola de meia

          cheia de chipipa da mafumeira.

          Tu me ensinaste a compreender e a amar

          os negros velhos do bairro Benfica

          e as negras prostitutas da Massangarala

          (lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita

                                                [essa mulata...)

          Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua

          de Benguela:

          era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro

          quando a gente vai na Escola da Liga.

          Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora

          Infância Perdida

          sonhos dos tempos de menino.

 

Tudo isso te devo

companheiro dos bancos de escola

isso

e o aprender a subir

aos tamarineiros

a caçar bituítes com fisga

aprender a cantar num kombaritòkué

o varre das cinzas

do velho Camalundo.

Tudo isso perpassa

me enche de sofrimento.

 

          Diz a tua Mãe

          que o menino branco

          um dia há-de voltar

          cheio de pobreza e de saudade

          cheio de sofrimento

          quase destruído pela Europa.

 

Ele há-de voltar

para se sentar à tua mesa

e voltar a comer contigo e com teus irmãos

e meus irmãos

aquela moambada de domingo

com quiabos e gengibre

aquela moambada que nunca mais esqueci

nos longos domingos tristes e invernais da Europa

ou então

aquele calulu

de dona Ema.

 

          Diz a tua Mãe, Edelfride,

          que ela ainda me há-de beijar como fazia

          quando eu era menino

          branco

          bem tratado

          quando fugia da casa de meus Pais

          para ir repartir a minha riqueza

          com a vossa pobreza.

          Diz tudo isso a toda a gente

          que ainda se lembra de mim.

          Diz-lhes. Diz-lhes

          grita-lhes

          aos ouvidos

          ao vento que passa

          e sopra nas casuarinas da Praia Morena.

          Diz aos mulatos e brancos e negros

          que foram nossos companheiros de escola

          que te escrevo este poema

          chorando de saudade

          as veias latejando

          o coração batendo

          de Esperança, de Esperança

          porque ela

          a Esperança

          (como dizia aquele nosso poeta

          que anda perdido nos longes da Europa)

          está na Esperança, Amigo.

 

Edelfride, você não chore

saudades do Castimbala

nem lhe escreva

cartas como essa

que são de partir

meu pobre coração.

 

          Nesse tempo, Edelfride,

          Infância Perdida

          era no tempo dos tamarineiros em flor...

 

 

Página publicada em abril de 2009



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