CRISTÓVÃO NETO
Nasceu em Luanda aos 30 de dezembro de 1954. Obras Publicadas: “Sinos d'Alma” (1994) e Pausa (1998).
Sinos d'alma - I
Eu não vivo
vivo disperso no mar cósmico
a minha existência é uma nuvem
eu não vivo
porque vivo a inconstância do ser.
Eu não vivo
vivo o grande conflito
entre as estrelas e os deuses
então me esqueço
dissipo-me nas trevas do Universo
então me vendo ao existencialismo de Sartre
e afogo-me no álcool da teodiceia.
Desisto:
a vida viveu-me
aspirando os meus parcos desejos.
Não existo:
Dei à Vida a minha vida!
O porvir? Eu não sei ...
Que há em eu ser somente eu?
Não são as flores apenas flores
E as folhas, folhas de um verde exacto?
Se assim é
Por que cingistes em mim
A extensão vaga de eu não ser eu mesmo?
O porvir?
Eu não sei ...
Tu conheces os passos do vento?
Que há no caminho cego que não vejo?
Serão as trepadeiras
Os degraus do meu desterro no tempo?
Se assim é
Por que fizestes de mim
A brisa rasa depois do temporal?
O porvir?
Eu não sei …
Mas quem saberá?
Pausa
Nesta noite luarenta, lenta
de silêncio é a minha alma
a luz que é imensa, cansa
o silêncio é a minha alma!
Nesta noite luarenta, lenta
peço uma trégua: uma légua
sem raciocínios, ígneos
a chapinhar o silêncio d' água!
Nesta noite luarenta, lenta
peço uma pausa: uma causa
para os resquícios de poesia
nos interstícios da minha alma!
A voz transcendente da voz
Sei lá
da voz da palmeira no palmo da voz?
Que são palavras? E pálidas?
A zoeira mítica
que sinto no búzio da minha voz
são galhos secos, aço e luz
lascas de sonho, ácido e pus!
É um alívio
o silvo intermitente da poesia
que sinto dormente no tropel da voz
que - minto - vem do meu outro ser
para ser o ser da cruz!
Igual à voz
só palavras no nó virtual das sombras
integralmente
eu nelas me absorvo!
E absorto
gozo o luar da palmeira na voz
integralmente
eu lhe tacteio o silêncio resignado dos seios!
As palavras são amantes
do meu outro ser
para ser sempre o sinal da cruz!
!
Extraídos de:
VASCONCELOS, Adriano Botelho de, org. Todos os sonhos. Antologia da Poesia Moderna Angolana. Luanda: União dos Escritores Angolanos "Guaches da Vida", 2005. 593 p.
As vozes
Abismos na laringe da noite
Cantam a valentia das mãos!
Das minhas mãos
— O moinho das vozes
Moendo as vozes das mãos —
Nasce a promessa contínua de silêncio!
O sol
Há-de morrer
Na palma do verbo
E eu serei convosco esta noite infiel!
II BIENAL INTERNACIONAL DE POESIA DE BRASÍLIA – Poemário. Org. Menezes y Morais. Brasília: Biblioteca Nacional de Brasília, 2011. s.p. Ex. único.
Cabe ressaltar: a II BIP – Bienal Internacional de Poesia era para ter sido celebrada para comemorar o cinquentenário de Brasília, mas Governo do Distrito Federal impediu a sua realização. Mas decidimos divulgar os textos pela internet.
Máscara
Seja a noite
A desconstrução da idade.
Mármore. Putas. Dedos infiéis.
(Estou só a brincar com os dedos!)
Desde há algum tempo
Eu próprio sumi em mim:
Os dedos bebem aços de fel
E o mármore veste-me os sonhos de frio!
Via-crúcis
Galguei
As palmeiras do meu ser:
Sonho de maruvo ao amanhecer!
Uma sandália no nada
Uma pegada ou uma jangada
Rojei-me aos pés do trono do tédio:
Lá estava a via-sacra no estendal dos passos!
Ó jóia da minha febre
Dói-me o punhal do destino
Tragam-me as utopias de amanhã
Que eu repartirei as rosas do meu cansaço!
Redenção de Gomorra
Na casa
Das ruas há luas perdidas.
Levantai estas saias de vento
No vosso corpo triste de trevas
Plantarei a salvação do mundo!
Ó luas de Luanda
Eis que trago o evangelho aberto
Para que tenhais a certeza que vos recebi!
Essa que eu hei-de de amar
Essa que eu hei-de amar
Que eu hei-de amar perdidamente um dia,
Será tão louca, clara, vagarosa e bela
Que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,
Trazer luz e calor a esta alma vazia e fria.
E, quando ela passar, tudo o que eu não sentia
Da vida, há-de acordar no coração que vela…
E ela irá como o sol, e eu irei atrás dela
Como sombra feliz… Tudo isso eu me dizia
Quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,
E claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro
Do poente, me dizia adeus, como um sol triste…
E falou-me de longe a menina albina que eu amei:
Uma noite, mas amei!
Essa que eu hei-de amar
Como anjo verde na caserna eterna das mãos estendidas:
(Fica mesmo assim como lua na vagina da tarde, senhora da luz!)
Voltaire vendeu-me a vertigem da luz
Na penumbra
Dois sexos
Celebro a margem das coisas!
De que me valem
Cinco cêntimos
De broa amarga no claustro da dor?
Deixar-vos-ei
A imitação da noite
Na retina confusa de Confúcio
Confesso: Voltaire vendeu-me a vertigem da luz!
Página publicada em junho de 2012; página ampliada em abril de 2019
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