SOB O SIGNO DE SATURNO (A POESIA DE
PEREIRA DA SILVA)
Por Antonio Carlos Secchin
Nasceu Antônio Joaquim Pereira da Silva em Araruna, Serra da Borborema, Paraíba, em 9 de novembro de 1876, filho do carpinteiro Manuel Joaquim da Silva e de Maria-Ercelina da Silva. A religiosidade o marcou desde a infância, quando foi coroinha. Aos 14 anos foi para o Rio de Janeiro e matriculou-se no Liceu de Artes e Ofícios. Bastante jovem trabalhou na Estrada de Ferro Central do Brasil. Em 1897, quando tencionava seguir carreira no Exército, envolveu-se em movimento revolucionário do corpo discente da Escola Militar e foi PM..] conduzido prisioneiro para um Batalhão de cavalaria no Paraná. Mais tarde trabalhou nos Correios e matriculou-se na Faculdade de Direito. Já bacharel, atuou como promotor público no Paraná. Retornou ao Rio em 1918. Atuou com destaque no grupo carioca do Simbolismo reunido em torno da revista Rosa-Cruz. Colaborou em periódicos como a Cidade do Rio, de José do Patrocínio, e dirigiu a revista Mundo Literário, em parceria com Agripino Grieco e Théo-Filho. Aceder à Academia Brasileira de Letras foi um de seus grandes objetivos, afinal concretizado em 23 novembro de 1933, quando foi eleito para a cadeira 18 na vaga do também poeta Luís Carlos. Tornou-se, assim, o primeiro paraibano a receber as galas da imortalidade literária, sendo também um dos primeiros poetas de filiação simbolista a envergar o fardão antes restrito (no que toca à poesia) à plêiade parnasiana. Recebido em 26 de junho de 1934 por Adelmar Tavares, viria, por seu turno, a efetuar o discurso de recepção de Múcio Leão, empossado em 16 de novembro de 1935. Falecido em 11 de janeiro de 1944, foi sucedido na ABL por Peregrino Júnior, que, em longo e substancioso discurso, evocou sua vida e obra na sessão de posse do dia 27 de julho de 1946.
Reconhecido como importante poeta da fase tardia do simbolismo, Pereira da Silva nunca logrou reimprimir os sete livros que publicou entre 1903 e 1940, hoje verdadeiras raridades bibliográficas, e jamais foi alvo, postumamente, de qualquer reedição, seja dos livros individuais, seja, ao menos, de antologia que efetuasse recorte seletivo nos mais de 500 poemas constantes de suas sete coletâneas. Não admira, portanto, que seu nome tenha sobrevivido quase que apenas em florilégios genericamente consagrados ao simbolismo, e é essa lacuna — a de um livro inteiramente dedicado ao poeta — que esta antologia vem preencher.
Acompanhemos, sumariamente, o movimento de consagração e de olvido que marcou a trajetória de nosso autor. Seu primeiro livro, Vae soli, de 1903, publicado em Curitiba, ostenta dedicatória a um importante corifeu do simbolismo sulista, Dario Veloso. Quinze anos se passam até que o segundo, Solitudes, venha a lume, já no Rio de Janeiro, e é com essa obra que, de fato, a poesia do paraibano chama a atenção da crítica. Tanto que, em 1919, seu terceiro livro, Beatitudes, inclui, em apêndice, um alentado e entusiástico estudo — quase 60 páginas — de Luís Murat, dedicado a Solitudes. Em Holocausto, de 1921, é a vez de Agripino Grieco manifestar-se positivamente sobre a poesia de Beatitudes, num ensaio de 44 páginas. O pó das sandálias, de 1923, transcreve estudo de João do Rio (à época já falecido) acerca de Solitudes.
Senhora da melancolia, de 1928, apresenta posfácio de Pinto de Rocha (10 páginas), relativo a O pó das sandálias. Finalmente, Alta noite... (1940) — a exemplo da obra de estreia — não traz aparato crítico, mas surpreende pela dedicatória: "A Jorge de Lima e Prado Kelly" - sinalização de uma afinidade ao menos pessoal com um poeta modernista, pois, no âmbito estético, Pereira da Silva permaneceria fiel até o fim de seus versos aos valores simbolistas, pelo menos enquanto não se localizarem as obras inéditas anunciadas na página 2 do volume de 1940. Sua morte, ocorrida em 11 de janeiro de 1944, foi notícia no semanário Letras e Artes, cinco dias depois, com a transcrição do discurso de adeus académico proferido por Múcio Leão. A maior homenagem do jornal, porém, viria na edição de 15 de outubro de 1944. Pereira da Silva foi o destaque de capa. Em matérias que ocupam 10 das 16 páginas do suplemento, reproduzem-se poemas, fotos, manuscritos do poeta e três artigos sobre ele, da autoria de Adelmar Tavares, Múcio Leão e João Ribeiro; além disso, essa edição de Letras e Artes inclui resumo biográfico, bibliografia ativa e fortuna crítica do escritor.
Depois, o silêncio - ou a voz quase inaudível, mesclada ao coro de muitas outras, nos grandes apanhados dos historiadores literários e nas antologias do simbolismo. Restrinjamo-nos a essas. Na mais ampla de todas, o Panorama do movimento simbolista brasileiro (1951), Andrade Muricy destaca seis poemas. A antologia dos poetas brasileiros da fase simbolista (1965), a cargo de Manuel Bandeira, reitera três textos, que, em 1943, ele já selecionara, ainda em vida de Pereira da Silva, para um prestigioso plantei de Obras-primas da lírica brasileira.
Curiosamente, na segunda edição da coletânea, de 1957, Bandeira conservou apenas um deles, "Nihil...". Em 1959, Fernando Góes, no Panorama da poesia brasileira — o simbolismo, é o único a incluir, entre os textos selecionados, poema do livro de estreia ("À minha mãe").
Na Poesia simbolista (1965), Péricles Eugênio da Silva Ramos aproxima a tristeza mansa, a doce melancolia de Pereira da Silva, do filão poético que pouco depois desembocaria em Ribeiro Couto. Lauro Junkes, no recentíssimo Roteiro da poesia brasileira — simbolismo (2006), contempla quatro poemas do autor.
A poesia de Pereira da Silva se pauta pelo obsessivo registro da dor, como observaram todos os seus intérpretes. Transcender a dor e a condição terrena pela
celebração da beleza se afigura a tarefa maior a que se propôs, com notável fidelidade, no arco temporal estendido da estreia com Vae soli aos versos derradeiros de Alta noite...: fidelidade, aliás, não só aos temas que se reiteram, mas também ao modo de exprimi-los. Desde a primeira hora, Pereira da Silva abraçou as formas fixas e a métrica regular, passando depois incólume pelos ventos ou furacões modernistas. Na métrica, predomina o decassílabo, a seguir o alexandrino, sendo bem raras as incursões na redondilha maior; outras medidas (o hexassílabo, por exemplo) surgem conjugadas ao decassílabo, em esparsos poemas que aparentemente comportam o verso livre, quando, a rigor, se tecem num regime polimétrico, na alternância de medidas regulares (dez e seis sílabas). As rimas opostas predominam nos quartetos dos seus numerosíssimos sonetos, e surgem emparelhadas nas peças à base de dísticos. Seu senso melódico é discreto, raramente permitindo-se a ousadia aliterativa de versos como "Lívido, largo, langue, longo, lento / Lá vais rolando, Lua do meu rio", de "Refletindo-se" (Holocausto).
Como declara no poema-pórtico de Solitudes, o poeta almeja dar "Estilo a tudo quanto é dor terrena"; em "Deus", afirma: "A minha própria dor me reconforta". Sob o signo de Saturno, arauto da solidão, do tédio e da melancolia, Pereira elenca suas almas irmãs: Baudelaire, Poe, Leopardi, António Nobre, Cruz e Sousa. O senti do litúrgico-salvacionista de seu verbo — como antídoto à miséria e à estreiteza de horizontes do homem — se ampara numa dicção elevada, num léxico que não raro recorre às formas latinas para nomear poemas, num recurso às epígrafes francesas que abrem cinco de seus sete livros. Tudo que remete à miúda humanidade é tratado com desprezo, na medida em que o cotidiano das cidades, para ele, confunde-se com a exacerbação da luxúria, do pragmatismo e do deserto de valores éticos (cf. "Diálogo íntimo", de Solitudes). Para amainar sua sede do Absoluto, Pereira da Silva ora invoca a dimensão da arte, ora a da religião, associada, em particular, à figura de Cristo.
Na travessia de um mundo degradado, conforme registra o belo "Os vencidos" (de Alta noite...), "O homem sem alma" (Senhora da melancolia) encarna o protótipo do antipoeta, do personagem-vilão vitorioso, efetivo protagonista de um século "de hulha, aço e cimento". Um dos poucos territórios amorosamente preservados por Pereira da Silva é o da infância na Paraíba, exemplo de poesia solar em meio a um conjunto maciçamente noturno; "Filho do Norte, a Natureza ardente / Amamentou de luz e de ar meus dias / Livres e soltos nesse verde ambiente / De florestas fecundas e sombrias" (“A idade de ouro", in Solitudes) — luz, observemos, já vincada pela sombra... A outra ponta da vida, a velhice, é registrada sem complacência no poema "Envelhecendo...", de Beatitudes. E, para além da vida, assinalemos, num poeta ancorado na fé cristã, os laivos de dúvida que afloram em "Dolorosa", de Beatitudes: "Ou não? Ou toda essa feição etérea / E a última forma da matéria / Que sai de um nada para um outro nada?...". Por duas vezes ao menos a ortodoxia católica é transgredida pela receptividade à hipótese da reencarnação: em "Incognitus", de Senhora da melancolia, e em "Metempsicose", de Alta noite...
As notas explicitamente sociais são raras em Pereira da Silva (cf. "Vaticinium, de Alta noite...), e não se alçam ao melhor nível do poeta, cuja inclinação vai à contracorrente do corriqueiro e do consensual. A consciência de viver à margem, num perpétuo conflito de valores frente a um progresso mesquinha e materialmente contabilizado, leva o poeta, como no belo poema "Ouvindo uma sombra", de Holocausto, a captar o universo à maneira de uma floresta de símbolos, na melhor tradição simbolista: "Há rumores confusos; há profundos / Murmúrios neste mundo e noutros mundos / A cujos céus embalde a Razão bate". Estar submetido à contingência e ao gozo da matéria — condição de que o poeta também se afirma inelutável prisioneiro — leva Pereira da Silva a retratar de modo negativo o perturbador fascínio feminino, em "Soneto de um bacilo" (Solitudes), "Mulheres" e "A uma espanhola" (Beatitudes), e a deblaterar a lascívia das folias carnavalescas ("Carnaval", em O pó das sandálias). Por outro lado, estende um olhar receptivo e generoso à mistura de etnias e culturas na fermentação da cultura brasileira, conforme se lê em "No cais" (Alta noite...): "Era um caos de energias, mas um caos / Que o calor brasileiro há de fundir / Na mais bela das raças do Porvir!". Já mais severo é o juízo que dirige a si mesmo, minimizando a própria força criadora, em "Ad amicos", de Beatitudes: "Não teve os altos dons reveladores / da divina Beleza, inda escondida". Mas, no mesmo poema, arremata: ".. .inda assim, no mundo da matéria / Dei ao pó de minh'alma a forma etérea / da dor humana espiritualizada". Nada poderia definir melhor o despojamento e a ascese de Pereira da Silva — nesses versos lapidares, conjuga a dor que aprisiona o homem à poesia que, pela beleza, consegue libertá-lo.
Extraído de:
SECCHIN, Antonio Carlos. Papéis de poesia [Drummond & mais]. Goiânia, GO: martelo, 2014. 160 p. (coleção ideia e memoria 02. série litrerae) 13x20,5 cm. ISBN 978-85-68693-01 -8 “ Antonio Carlos Secchin “ Ex. bibl. Antonio Miranda
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