SEMPRE JOSÉ GODOY GARCIA
Por Salomão Sousa
na celebração (póstuma) dos CEM ANOS DO POETA
Na minha viagem para Jataí, enquanto lia o livro de José Godoy Garcia para seleta de poemas que pudesse ler no evento programado naquela cidade goiana em homenagem ao Centenário de seu nascimento, emocionei-me a ponto de eriçar os pelos como um gambá diante do pote de mel, como o beija-flor diante do hibisco, ou como a botina diante da relva orvalhada em hora matutina.
Perdemos muito em não aproveitarmos com maior evidência a poesia de José Godoy Garcia. Perdemos brasilidade e hausto de poeticidade. Em que pese o crescimento de sua aceitação, estamos longe do que a sua poesia merece no que diz respeito à acessibilidade à leitura, a boas edições que possam estar no mercado, e, com isso, ela não é mencionada e catalogada devidamente dentro do contexto histórico da Literatura Brasileira. Tratamos muito mal alguns poetas na hora de dimensioná-los, sobretudo em razão da nefasta cegueira para a desmontagem de avaliações ultrapassadas, abertura de novas fronteiras e assentamento de novos valores. Não julgo exagero considerar que um poeta que compôs um poema como “Pequena coisa imóvel” deva ser colocado no pedestal ao lado de mestres como Rilke, Neruda e Whitman.
Trata-se de uma poesia que se realiza sem necessidade de exibir a sutileza da composição, pois centrada na sutileza da expressão. Ninguém como José Godoy Garcia para compor sem malabarismos formais, e ele até zomba disso.
Sem nenhum laivo de pretensão, a poesia de José Godoy Garcia ombreia, por exemplo, em expressividade com Fernando Pessoa. Além de produzir o poema com sábio ordenamento interno, mais carregado na enfática metafísica, o homem por ele exibido se coloca no fundo desse ordenamento dos versos, gerando um embate com a vida, num resultado impossível de não indicar emoção e relações para interpretação da inclusão do indivíduo na realidade. A poesia – se existir um modelo de exibida composição–, é essa desnecessidade de exibicionismo para demonstrar existência. Não é necessário que os artifícios de construção estejam mais em evidência do que a proposta de aproximação ontológica dos temas. Todo leitor está acostumado com esse elemento em Fernando Pessoa, e, em José Godoy Garcia, irá encontrar ainda a sutileza construtiva, onde os efeitos estão incorporados à significação.
A sessão magna realizada no dia 3 de junho de 2018, no auditório do SESC, promovida pela Secretaria Municipal de Cultura de Jataí, pelo SESC e pela família do poeta, sob o comando da sobrinha Andrea Godoy Garcia, da qual participamos como debatedor, contou com moderação da professora Flomar Chagas, da Academia Jataiense de Letras, e exposição a cargo de Ionice Barbosa, de Catalão, que está desenvolvendo trabalho de doutorado sobre êxodo rural a partir do romance O caminho de trombas.
O poeta nasceu naquela cidade, onde passou a infância entre tropeiros e prostitutas e assistiu a passagem da Coluna Prestes. Ele sempre retornaria àquela cidade para se refugiar da perseguição política e para convívio com irmãos e outros familiares, ele que ficou órfão na infância, sendo criado pela avó Maria Rita Guimarães e pelo tio Marcondes de Godoy, que foi deputado estadual e intendente municipal de Jataí. Ali chegou a morar por alguns anos antes de transferir-se para Brasília.
José Godoy Garcia, que residiu em Brasília de 1957 até seu falecimento, integrou, como assessor jurídico, a Comissão Goiana para a Mudança da Capital Federal, presidida por Altamiro de Moura Pacheco, e que fora criada pelo Governador José Ludovico de Almeida (Juca Ludovico). Pertenceu por um período à Associação Nacional de Escritores e foi um dos fundadores do Sindicato de Escritores de Brasília.
A Geração 45, que José Godoy Garcia formou com José Décio Filho, Domingos Félix de Souza, João Accioli e Bernardo Élis, foi responsável pelo redirecionamento da literatura para o Modernismo em Goiás. Não confundir o grupo com aquele homônimo, que representava no plano nacional o retorno a uma literatura conservadora em termos de temática e de composição.
Quando José Godoy Garcia faleceu, em 20 de junho de 2001, declaramos ao Correio Braziliense que a poesia brasileira perdia uma maneira de ver o mundo, uma poesia marcada pela pureza e pela inocência, e também pela autenticidade. No mesmo dia, a poeta e crítica literária Darcy França Denófrio enfatizou ao jornal O Popular que, por unanimidade, Godoy é considerado o principal poeta do Modernismo goiano, apesar de ter precursores como Léo Lynce e José Décio Filho. Na contramão, José Fernandes, que foi estudioso da Literatura Goiana, declarou que José Godoy Garcia é poeta engajado. Se a sua poesia fosse engajada, ela não estaria em ascensão em épocas de visceral nojo ao marxismo-stalinismo, merecendo registrar que, em 2013, o livro Poesia (que reúne sua obra poética) foi obra de referência no vestibular da Universidade Federal de Goiás e vem sendo escolhida para várias teses universitárias, as quais podem ser consultadas na íntegra no ambiente virtual.
O artigo que Alaor Barbosa publicou na Revista da Academia Goiana de Letras sobre o Modernismo em Goiás também não é, em parte, justo com José Godoy Garcia, pois considera que “Bernardo Élis e José Godoy Garcia (após defecções, em 1956, do Partido Comunista) publicaram mais livros do que antes, sem abandonarem o protesto e a denúncia; mas se comportando, com cautelosa dissimulação, ou simplesmente calando opiniões políticas e procurando apresentar-se publicamente como ‘literatos puros’, sem a antiga eiva ideológica”. Se não estavam na militância política, certamente que esses autores puderam dedicar mais tempo à literatura. Certamente, não poderiam centrar suas obras numa temática que pudesse ter um direcionamento ideológico, pois agora eram ‘literatos puros’. E é o caso de perguntar se a expressão “literato puro” pode ser reconhecida como é reconhecida a expressão “puro sangue”. O que se deve dizer é que José Godoy Garcia escreveu “poesia pura”, sem contaminação da “eiva ideológica”, que não abandonaria enquanto vivesse.
Tanto a sua poesia não foi engajada que ele não produziu nos doze anos de militância marxista-leninista (1945/57). O livro Rio do Sono, concluído em 1944, que dedicou a Mário de Andrade, foi publicado em 1948, e só vinte e quatro anos depois (1972) publicaria Araguaia Mansidão, seu segundo livro de poesia, que teria divulgação limitadíssima na época em razão de censura do Golpe de 1964 pelo interventor de Goiás.
À medida que a poesia de José Godoy Garcia vai se desvinculando da indevida classificação de engajada em razão de sua militância marxista-stalinista, ela vai ocupando seu espaço não só em Goiás, mas também no estrangeiro. Ela já consta de antologias de poesia brasileira publicadas na Alemanha, na França, Portugal e Espanha, e seus livros integram o acervo das principais bibliotecas das universidades americanas.
Em 2005, a família de José Godoy Garcia conseguiria indenização em favor da esposa Maria Rachael Garcia por anistia do poeta por ter sido impedido de exercer a advocacia no período de abril de 1964 a 1980 em decorrência de motivação exclusivamente política. Os advogados que representaram a família relacionam no processo as perseguições que os órgãos de repressão registram sobre José Godoy Garcia nos arquivos da ABIN: atuação no jornal O Estado de Goiás, órgão de divulgação do Partido Comunista; como advogado, em Brasília, teria o poeta sido mentor de assaltos e outras atividades subversivas no Brasil; foi indiciado em IPM, em 06.07.1972, onde foi solicitada sua prisão preventiva; por ter sido autor do romance O Caminho de Trombas, que retrata atividades de movimento de camponeses em Formoso; por ter publicado no jornal Cinco de Março, em 10.06.1968, artigo “no qual eram feitos ataques à Revolução de 1964 e à classe militar”; e, ainda, registro nos órgãos repressivos, datado de 15.04.1972, em que é “citado como advogado em Brasília, mentor de assuntos e outras atividades subversivas no Brasil com verbas recebidas do estrangeiro e autor do Estatuto da Associação dos Lavradores de Formosa e Trombas”; por figurar na relação dos fundadores da Associação Cultural Brasil/Cuba do Distrito Federal; e por atuação como advogado da Associação dos Lavradores de Formosa e Trombas (GO).
Em declaração do advogado José Luiz Bittencourt, colhida pelos advogados como elemento de prova do processo de anistia de José Godoy Garcia, ele afirma que foram colegas no Departamento Estadual de Cultura e, antes, no Departamento de Imprensa e Propaganda, que ambos militaram na advocacia e que, depois de ele se tornar militante do Partido Comunista, José Godoy Garcia teve cassado o registro de advogado. Declara ainda que ele “foi um grande poeta e é um dos nomes de maior importância do mundo cultural de Goiás. Um brasileiro nascido em Goiás que sempre lutou contra o autoritarismo, o arbítrio e a injustiça social. Um marxista que acreditou na filosofia política dos que abraçavam a sua doutrina”.
Ainda José Luiz Bittencourt, num dos três capítulos do livro A consciência da palavra dedicados ao poeta, afirma que a poesia de José Godoy é inspirada na inventividade. “Muito diferente de sua personalidade no convívio social, isto é, de sua conduta humana, pois irreverente, agressivo, irônico, tornava sempre difícil desvincular o real da fantasia em suas descrições literárias. Não poupava crítica dura e pesada àqueles que considerava débeis nas incursões no mundo das letras, "gênios da imbecilidade" como ... definia os favelados da poesia, expressão um pouco estranha, mas vivamente ilustrada de sua combatividade no terreno da estética e da arte".
Fábio Lucas, em artigo consagrador da poesia de José Godoy Garcia, aclama que “o lado catártico não atinge nele a ideologia bélica, como se quisesse combater a violência com outra violência. O seu apelo social veste-se de um realismo antifascista. Mas seu discurso não visa o ato da repressão, antes a conquista da liberdade: liberdade do corpo, da alma, do viver em plenitude, com os outros e para os outros, construtivamente”.
Ressaltamos que José Godoy Garcia era combativo no seu exercício civil, na prática jornalística de crítica hostil aos governantes da ditadura, mas de uma poesia integrada à paisagem goiana, à urbanidade de Brasília, e de um convívio pacífico com os amigos, seja nos bares ou em sua casa na quadra 706 Sul, próximo à Biblioteca Demonstrativa. Uma das maiores lembranças de nosso convívio de viva amizade foi sua presença em um dos meus aniversários. Só um poeta desequilibra as formas das relações capitalistas: presentear o amigo com uma braçada de folhas de bananeira.
Pequena coisa imóvel
Há um ar de vida em flor
na pequena coisa imóvel
que se chama ovo. É manhã?
Montanha? Nuvem? Porco?
Oh Senhora dos Mares e Oceanos
um ovo nunca foi propriamente
algo que tivesse parentesco
consigo mesmo, lembra morada,
lago de água vermelha, sol.
Um ovo é igual à música
que se descobre no dia
ensolarado.
É começo da morte
de qualquer coisa
que vai nascer.
E será vida de qualquer luz
que o trabalho da morte
vai merejar aurora
até vencer.
É suave e sem tristeza
e sua arquitetura lembra
os sóis das origens do mundo
e recorda a pureza da terra.
Para informações sobre minhas atividades literárias, visite o meu blog http://www.safraquebrada.blogspot.com/
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