A LUTA COM O ANJO
[ sobre Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima ]
Por Murilo Mendes
A natureza de Jorge de Lima é das mais ricas e generosas que este país produziu até hoje. Essa natureza pagã, constantemente sacralizada - e aqui o advérbio se reveste de particular significação - forneceu-lhe o material de um agudo conflito, ao mesmo tempo que lhe apresentou os sinais da sua libertação.
A pessoa, a vida e a obra de Jorge de Lima ilustram esta verdade
tantas vezes obliterada - a vocação transcendente do homem. Se Jorge de Lima não tivesse tomado consciência desta grandeza final do nosso destino, não hesito em afirmar que poderia ter sido um suicida. Transparece nos seus livros e na sua própria fisionomia um antecipado cansaço da tarefa prodigiosa que lhe foi imposta. Quantas vezes, ao entrar na sua casa ou no seu consultório, me comovi e me preocupei ao notar sua estranha palidez, a carga de tristeza no seu olhar, entretanto equilibrada pelo sinal constante do ingénuo sorriso! Ele mesmo em inúmeras páginas insinua, ele mesmo - suprema coragem - se define um mágico e um claune espiritual. Um claune de génio, digo eu, capaz de transpor aos olhos do mundo a pobre matéria do seu sofrimento em canto largo e purificador.
Toda a obra de Jorge de Lima se reveste de um acentuado caráter teatral - e é óbvio que retiro desta palavra seu significado exterior ou pejorativo. Muitos de seus poemas poderiam ser adaptados para atos dramáticos. O aspecto monumental desta obra resulta da explosão de um temperamento destinado a representar múltiplos papéis, e enjaulado dentro
das quatro paredes de um consultório. Vista deste ângulo a obra jorgiana resulta em desforra, em sublime vingança dos poderes da mediocridade.
A prodigalidade da sua natureza pede que Jorge se desdobre em vários planos. Mesmo considerando-o unicamente do ponto de vista da realização poética, não se pode eliminar destes riquíssimos textos a presença do pintor-amador, do escultor-amador, do operador de fotomontagens, até do jornalista, até mesmo do médico. Certos poemas apresentam--se como reportagens de alta classe. Em alguns subsistem
alusões a veias e vísceras, manifestadas pelo subconsciente do médico. E há poemas resultantes de um processo de cruzamento de episódios bíblicos com outros da vida contemporânea. Muitos aspectos fundamentais do drama são às vezes disfarçados pelo revestimento de roupagens suntuosas, revelando no poeta um gosto decorativo extenso e cultivado. O choque de ritmos, de valores e de formas, a intuição da cor em equivalência a determinado espaço, acusam o pintor amador às vezes chegando à realização plástica, como atestam, entre outros, António Bento e Rubén Navarra.
Invenção de Orfeu é o máximo documento literário da natureza barroca do Brasil. Esta obra genial não nasceu da planificação da brasilidade; por isso mesmo, na sua força caótica e dispersa, é uma poderosa imagem deste país afro-europeu que carreia uma antiga cultura para enriquecer suas nascentes bárbaras. O texto de Invenção de Orfeu é extremamente complexo e erudito. Apresenta diversas técnicas e faturas:
poesias metrificadas e rimadas, outras em metro livre e verso branco, sonetos, canções, baladas, poemas épicos, líricos, poesias de carne e de sangue, poesias de infância, episódios surrealistas, esboços de dramas e de farsas.
Além do caráter barroco da obra, sinto aqui, dominando tudo, a presença do mito, da metamorfose e do humour negro. E tudo isto enquadrado na dimensão teológica - se bem que seja muito difícil estabelecer nestas páginas o limite entre o espírito telúrico e o sobrenatural. A obra, necessário é confessá-lo, tem os defeitos provocados pelas suas próprias qualidades — mas estas qualidades são enormes. Como policiar semelhante força? Como conter o rio São Francisco? A poesia transbordou da fraqueza primitiva do homem, subjugou-o, castigou-o
rudemente, extraiu-lhe talvez a seiva, esgotou suas reservas... Mas quem sondou o subsolo do espírito de Jorge de Lima e mediu todas as suas possibilidades? É muito provável que dentro em pouco ele se levante da luta com o Anjo, trazendo-nos um novo diamante arrancado aos abismos.
O texto de Invenção de Orfeu, quando publicado, desnorteará certamente a crítica. Imagine-se o menino Lautréamont a se nutrir nos alentados peitos das musas de Dante, Camões e Góngora! Quero acentuar que o processo gerador deste livro é o da fotomontagem, isto é, o recorte e cruzamento de ideias, palavras, imagens, alegorias, sensações, operando-se ainda a redução ou o aumento superlativo das categorias de tempo e espaço.
A objeção máxima à unidade da obra de Jorge é fundada em geral sobre o aparente exagero das influências observadas. Sinto não ter à mão a cópia de uma carta de Mozart onde ele diz, em substância, estar sempre com a cabeça fervendo de planos e ideias e não dispor do tempo necessário para inventar um molde novo para os mesmos. Achando perto um molde alheio, usa-o e refunde-o como entende, imprimindo-lhe a marca pessoal do seu estilo. Na vida e na obra do autor de Don Giovanni o capítulo das influências foi estudado a fundo. Desde o primeiro minueto até os últimos esboços da Missa de requiem as influências manifestam-se fortemente —
o que não impede Mozart de ser único e insubstituível. Na nossa época o exemplo clássico do artista extremamente sensível às influências é Picasso. E não adianta teorizar, discutir, descobrir no autor de Les Demoiselles d'Avignon mais um inventor (um engenheiro! como querem alguns) do que um artista... A grandeza do seu génio e da sua obra é mais expressiva do que todas as resistências. De resto a nossa época, época de invenção, contínua pesquisa e interpenetração de fatos e de ideias, é logicamente favorável ao crescimento das influências no espírito dos artistas cuja receptividade aos múltiplos aspectos e fenómenos da natureza e da cultura é, por definição, maior do que a dos outros homens. Em Invenção de Orfeu, noto que Jorge de Lima atinge o máximo da sua permeabilidade aos fatos e teorias comunicantes, ao mesmo tempo que completa sua fisionomia de poeta e artista capaz de receber e transmitir ondas de grande vibração, na mais ampla faixa.
O livro encerra uma dominante anárquica, como a nossa época o é, apesar das planificações e do dirigismo de fachada. Anárquica é a própria substância do homem desde o instante da Queda, que é em última análise o tema desta imensa obra. Queda e transfiguração. O poeta não se vexa de apresentar a condição humana em sua precariedade, sob as espécies da
argila terrestre. Poucos poemas conheço em que a matéria, a pobre matéria da nossa antiga formação, seja tão machucada como neste. Em certas páginas o poeta se manifesta quase um frio realista, um técnico de laboratório. Dar-se-á isto de vido à intervenção do médico Jorge de Lima? Talvez. Mas, quem melhor que o homem católico conhece nossa obscura e
complexa natureza? Quem, melhor do que ele, sondou nosso abismo e percorreu o campo do infinitamente pequeno e do infinitamente grande?... E possível que o título adequado a este livro fosse "Retraio do homem poeta miserável e transfigurado", mas, como é muito longo e lembra um pouco o da obra famosa dejoyce, detenhamo-nos em Invenção de Orfeu.
[Publicado no suplemento "Letras e Artes" de A Manhã, Rio de Janeiro, 17 de junho de 1952. Transcrito no apêndice da primeira edição de Invenção
da Orfeu.]
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