OS CONCEITOS DE AUTORIA E ORIGINALIDADE NA OBRA DE GREGÓRIO DE MATTOS: UMA CONTROVÉRSIA
por Antonio Miranda
Resenha da obra:
João Adolfo Hansen
A Sátira e o Engenho
GREGÓRIO DE MATTOS E A BAHIA DO SÉCULO XVII
São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora Unicamp, 2004.
528 p. ISBN 85-7480-136-4 e 85-268-0677-7
Gregório de Mattos é um personagem mítico, emblemático, ficcionalizado, mais idealizado do que propriamente retratado em nossa literatura.O que se diz dele está mais para cordel e enredo de escola de samba do que para estudos mais profundos. Existem dezenas de livros, teses e ensaios sobre o Boca do Inferno. Uma das obras mais contundentes sobre o nosso poeta baiano foi empreendida, em seu tempo, por Araripe Júnior, considerando-o um perverso, um furioso, conceito bem diferente do que hoje em dia se atribui ao bardo soteropolitano... Mas o ensaio de Araripe Junior* merece leitura por sua erudição e por revelar uma visão típica do final do século XIX. Cabe ressaltar ainda o capítulo em que expõe e conceitua a poesia satírica.
Quem mais se aproximou da questão foi (é) João Adolfo Hansen em sua tese de doutorado, mas relançada recentemente, em edição revista em certa extensão. Defendida na USP em 1988, foi desmembrada em artigo científico numa revista institucional e logo recomendada para publicação em escala mais comercial, agora republicada com alguma revisão e atualização. Hansen recolocou a questão central da autoria e a conceituação do barroco para entendermos a produção satírica de Gregório de Mattos em seu momento de criação. Instituiu um divisor de águas na literatura sobre o grande poeta.
Dissemos, no início desta resenha, que Gregório de Mattos foi ficcionalizado. E muito. Um dos melhores exemplos é o filme de Ana Carolina "Gregório de Mattos". Embora a criativa diretora tenha hasteado o seu roteiro nos textos originais do poeta, a sua visão do poeta é própria, ficcional, nem por isso desinteressante. Ao contrário. A interpretação de Waly Salomão do personagem é extraordinária, embora esteja mais para Waly do que para Gregório. O escracho, a irreverência e o tom ditirâmbico são pertinentes, mas não necessariamente legítimos, a julgar pela análise de João Adolfo Hansen. Em sua pesquisa, descobriu que Gregório tinha uma boca pequena enquanto Waly é o bocão escancarado, uma caricatura do poeta bardo baiano. Ótima como interpretação, mas alheia à suposta verdadeira fisionomia e personalidade do personagem. Por certo, Waly sempre leu seus poemas daquele jeito nas suas aparições na antiga TVE, e Ana talvez tenha reconhecido nele uma reencarnação do Gregório, mas produzindo a carnavalização de sua história. Sem nenhum desmerecimento para o trabalho de nossa cineasta que fez o que a (re)criação artística de nossos tempos exige e permite. Sem dúvida, um belo filme.
O texto de Hansen é magnífico, embora sua leitura não seja fluída por sua complexidade e sua linguagem culterana, acadêmica. O que ele pretendeu, seguindo suas próprias palavras, foi a leitura dos poemas de Gregório de Mattos "conforme regras discursivas de seu tempo e, simultaneamente, a de criticar posições críticas "expressivas" e "representativas", que obliteram a historicidade da prática satírica, quando a efetuam como exterior à sua própria história, ora como reflexo realista, ora como "ressentimento" psicológico e "oposição" política repressivos." (op. cit. p. 32). Ou seja, coloca em xeque a bibliografia crítica de outros autores que teriam avaliado a obra do poeta pelos valores e visões fora do tempo em que foram produzidos. Uma questão de "estilo, historicamente determinada".
Uma questão basilar no raciocínio de Hansen está ligado às noções de autoria, novidade estética, plágio e originalldade que eram bem diferentes no período barroco.
"A poesia engenhosa do século XVII é um estilo, no sentido forte do termo, linguagem estereotipada de lugares-comuns retórico-poéticos anônimos e coletivizados como elementos do todo social objetivo repartidos em gêneros e subestilos. Evite-se o estereótipo: "estereotipada" significa aqui, nem mais nem menos, fortemente regrada por prescrições de produção e recepção, não o pejorativo do desgaste dos usos e redundância. Não é "inventiva" —no sentido rotineiro de "expressão esteticamente desviante"—, mas engenhosa, aguda e maravilhosa, no sentido das convenções sociais seiscentistas da discrição cortesã, do gosto vulgar, do engenho agudo e da fantasia poética. Ao poeta seiscentista nada é mais estranho que a originalidade expressiva, sendo a sua invenção antes uma arte combinatória de elementos coletivizados repostos numa forma aguda e nova que, propriamente, expressão de psicologia individual "original", representação realista-naturalista do "contexto", ruptura estética com a tradição etc."
Nada disso..
"Entre tais elementos, a obscenidade está prevista num sistema de tópicas, articulando-se retórica e politicamente nos poemas segundo gêneros, temas e destinatários específicos. Categorias como "pessimismo", "ressentimento", "plágio", "imoralidade", "realismo", "oposição nativista crítica", "antropofagia", "libertinagem", "revolução", que vêm sendo aplicadas por várias críticas desde o século XIX ao poemas ditos da autoria de Gregório de Mattos, podem ter algum valor metafórico de descrição de um efeito particular de sentido produzido pela recepção. Não dão conta historicamente, contudo, do seu funcionamento como prática discursiva de uma época que, desde a obra de Heinrich Wölflflin, o século XX constitui neokantiana como "barroca"(...)". (opus cit. p. 33)
E assevera, mais adiante:
"Relacionando-se pragmática e estilo, pois, evidencia-se que "originalidade", nos dois significados principais do termo, "autoria" e "criação", é critério duplamente exterior à poesia do século XVII: nela, a figura individualizada do Autor, no sentido subjetivado do termo, não tem importância, rigorosamente falando, a não ser como elemento posterior ao poema, efetuado pela leitura".
Para o bom entendedor, tais palavras bastam. "Autoria" é um delírio romântico. Que é atualmente apropriado de forma abusiva pelos "direitos autorais" em leis patrimonialistas como a nossa, sem entender o sentido coletivo do termo no processo criativo do autor, ainda que estes expressem alguma originalidade. E plágio só é reconhecido, na atualidade, nos termos da cópia da forma em que o texto se apresenta e nunca na idéia que a alicerça. Vale dizer: plagiar as idéias, conforme a lei em vigor, é permitido, fazer "corte e cola" ipsis litteris é crime...
Nos tempos de Gregório de Mattos era diferente. Para entender todo o processo criativo do nosso Poeta, e sua real significação em seu sentido histórico, a obra de João Adolfo é recomendável e vem sendo adotada em cursos especializados. Até agora, é insuperável.
ARARIPE JUNIOR, T. A; Literattura Brazileira - Gregório de Mattos. Rio de Janeiro: Fauchon & Cia., 1894. 150 p.
Página publicada dia 27 de dezembro de 2010 |