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AS ORIGENS DA CRÍTICA LITERÁRIA
NA POESIA DE PERO DE ANDRADE CAMINHA

 

Por Antonio Miranda

Poucos já ouviram falar ou já leram os versos de Pero de Andrade Caminha. Inimigo de Luiz Vaz de Camões. Poeta consagrado em vida, mas pagando o preço do descrédito e antipatia dos lusitanos. Escreveu éclogas, epístolas, elegias, sonetos, odes, epitalâmios, epitáfios e epigramas, tudo o que um bardo português quinhentista fazia por prazer ou a soldo, ou até por bajulação. Morreu em 1589 mas seus versos só foram publicados em 1791, pela Academia Real de Ciências de Lisboa. Queixava-se dos críticos:

“Queixo-me, douto Andrade, duns indoutos
Que o que às vezes lêem mal, pior entendem,
Querem julgar como se fossem doutos”.

Caminha tinha lá os seus motivos para o desabafo metapoético, por ser tão duramente criticado por seus contemporâneos.

“Tão facilmente a seu gosto repreendem
As vigílias alheias, que eu me espanto
Como eles de si mesmos não se ofendem”.

“O verso ou mal ou bom, o escrito, ou canto
Qu´o esp´rito custa estudo, e tempo, e lima
Julgam como que não custassem tanto”.

Uma nítida amargura habitava a mente do poeta Caminha, desconsiderado pela crítica de seus pares e dos estudiosos, embora fosse – segundo o próprio julgamento – culto e competente em seu ofício poético, reconhecimento que só viria séculos depois.

“A livre prosa ou obrigada rima
Por seu juízo e só entendimento
Assí a tem em desprezo, assim em estima”.

Se lhes pergunta pelo fundamento,
Respondem só, que bem não lhes parece.
Querem que o obrigue o seu contentamento.”

Queixumes, azedumes de um poeta ofuscado pela glória do inimigo, discriminado pelas simpatias unânimes em seu desagravo. Como ousava Caminha criticar o autor dos Lusíadas, arvorando-se de crítico?! Na “Epístola XVII” endereçada aos seus detratores, faz a própria defesa e esgrima argumentos em favor de uma crítica menos pessoal, ou meramente de simpatia ou antipatia, cobrando racionalidade e “fundamento”. Não lhe conhecemos as críticas aos versos camonianos, nem sabemos se eram mais bem invejas ou disputas pessoais. Se fazia críticas ao Caolho, não gostava das que lhe endereçavam...

“Com quais julgas que deve ser escrito
Aquele de juízo tão ousado,
Que quer assim julgar o alheio escrito?”

O sisudo, o prudente, o atentado,
O douto, antes que julgue tudo atenta,
Por não ser seu juízo mal julgado.”

Qual deveria ser a postura correta do crítico? Devia ser superior em produção ao criticado? Como julgar sem ter obra em que sustentar-se? A crítica ainda não estava fundamentada em teorias e postulados literários consistentes, embora já circulassem estilos e modos de criação ou imitação que vinham sobretudo dos petrarquianos e de cultores da poesia castelhana ou francesa da época... Por certo, eram raros os poetas portugueses que não produziam versos em espanhol para demonstrar erudição, sobretudo durante a união das coroas (1580-1640) que o próprio Caminha vivenciou.

“Ante os olhos primeiro representa
A obrigação do verso, e a natureza,
Vê se ofende a invenção, ou se contenta”.

Com livre esp´rito nota, e com pureza
Os conceitos, as frases, as figuras,
E se na língua tem cópia ou pobreza.”

Na função da crítica estaria, portanto, buscar a originalidade e a riqueza da obra criticada.

“Se as palavras são próprias, se são puras,
Se as busca claras para o que pretende,
Ou se ásperas, difíciles, e escuras.

“O decoro se o guarda, ou se o entende,
E se matéria é bem ou mal seguida,
Se abranda, ou afeiçoa, ou move, e acende.”

“Se toma imitação bem escolhida,
Se o estilo é sempre grave, ou sempre brando,
Se a sentença a bom tempo, ou mau trazida.”

“Se se vai longamente dilatando,
Ou se diz o que quer tão brevemente
Que ou não se entende bem, ou vai cansando”.

Quem tudo isto, Francisco, nota, e sente
Com claríssimo juízo, e peito puro,
E o mais que enjeita a musa, e o que consente:

Julgue, ria, repreenda, e estê seguro
Que deve inteiramente de ser crido,
E eu, deste sós esp´ritos trato, e curo.”

“Destes quero ser antes repreendido,
Destes como tu és, ó raro Andrade,
Que dos outros louvado e recebido.”

Parece instruir mais do que inquirir, parece querer doutrinar sobre a prática da crítica antes de desautoriza-la. Melhor seria dizer que se valeu da Epístola para dissertar sobre as regras e costumes da boa crítica literária, que não era comum entre os seus detratores. Francisco Andrade, ao contrário, personificava o modelo que o injustiçado Caminha proclamava: “A quem dá a repreensão autoridade”.

Não sabemos de outro desabafo ou desagravo anterior ao de Caminha, na história da crítica literária em língua portuguesa. Nem de forma tão contundente e arrazoada.
Continua a sua queixa de uma crítica superficial e leviana:

“Se dá razão, mais fria a dá que neve,
Sem fundamento louva, e assi reprova,
Quem em juízo apressado à razão leve”. (...)

“Têm as línguas agudas mais que d´aço
Estes que querem ser graves censores,
Se lhes armas, caem logo em qualquer laço.”

Juízos vãos, indoutos repreensores,
Não sofrem musas ser assi tratadas,
Nem recebem de vós inda louvores.”

A longa Epístola segue louvando o amigo e invocando deuses e musas da mitologia como soia ser de bom alvitre.

“Seja meu verso, sem nenhum respeito
Daqueles, a que Febo maior parte
Tem de si dado, ou repreendido, ou aceito.”

“Seja de ti, Francisco, que guardar-te
Quis par´honra da musa portuguesa,
E para entre os mais raros mais mostrar-te”.

Horácio (65-8 a.C), que também fez seus versos didáticos, já confessava interesse pelo tema em sua célebre “Arte Poética”, como neste fragmento elucidativo do Canto XXXIX:

“Quem tem bondade, e critica prudentemente,
Repreeende os versos frouxos; culpa os duros;
Risca os que não têm graça; os ambiciosos
De nímia pompa corta; os poucos claros
Obriga a terem luz; aos de sentido
Duvidoso se opõe; enfim aponta
Tudo o que há-de mudar-se (...)”.

Não obstante a linguagem datada, os recursos próprios de uma “tecnologia” poética determinada, os conselhos e argumentos soam permanentes nos versos de Pero de Andrade Caminha, em textos fundadores de nossa tradição crítica, como nos de Horácio, mestre dos mestres.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Poemas resgatados de um dos volumes da célebre edição dos

CLÁSSICOS JACKSON. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1950. vol. XXXVIII (Série Poesia, vol.1).



 

 

 
 
 
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