OS ARQUIVOS SECRETOS DA NEPHELIBATA
Editora trabalha com autores como Giorgos Seféris, Ian Curtis, H. P. Lovecraft, Mário de Sá-Carneiro, João do Rio e Villiers de l’Isle-Adam, entre outros
Floriano Martins
Especial para o Diário de Cuiabá
Em 2007 fui convidado para uma leitura de poemas no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Além do encanto de minha primeira viagem a Minas, a delícia da viagem esteve por conta de que aproveitaríamos aquele espaço para apresentar ao público uma novela minha, Sobras de Deus, que acabara de sair pelas Edições Nephelibata, de Santa Catarina, com o luxo de contar com a presença de seu editor, Camilo Prado. Criada em 2001, as Edições Nephelibata (http://edicoesnephelibata.blogspot.com/) se destaca pela primorosa edição de livros artesanais, somando riqueza de conteúdo, recuperação de títulos deixados de lado pelo mercado editorial e projeto gráfico de inquestionável qualidade. Comemorando este ano seu aniversário de 10 anos de existência, nos próximos meses teremos a edição de livros de Leopoldo Lugones, Apollinaire, Jorge Luis Borges, Marcel Schwob, Augusto dos Anjos e Junqueira Freire. Dentre os muitos autores que compõem seu invejável catálogo, destacam-se Giorgos Seféris, Ian Curtis, H. P. Lovecraft, Mário de Sá-Carneiro, João do Rio, Villiers de l’Isle-Adam, Dino Campana, Joaquim Pasos, Machado de Assis, Konstantino Kaváfis, Aldo Pellegrini, Jacob Klintowitz, além de seu precioso “Arquivo Decadente”, de poesia brasileira simbolista em sua grafia original. O editor, narrador e tradutor Camilo Prado (Santa Catarina, 1969) é autor de livros como Nefas¡¡(2004),¡¡Uma Velha Casa Submarina¡¡(2005), e¡¡Pulcritude¡¡(2006). Estudioso do simbolismo, doutorou-se em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, com tese em tradução da obra¡¡Tribulat Bonhomet de Villiers de L’Isle-Adam. A seguir, para os leitores do DC Ilustrado, uma conversa minha com este admirável editor. Abraxas
Floriano Martins: Em que circunstância surge este teu projeto editorial em torno das Edições Nephelibata?
CAMILO PRADO: A ideia inicial partiu de uma revista que um amigo, Jason de Lima e Silva, e eu tínhamos em vista. Uma revista que seria de arte e filosofia. Na época estudávamos juntos na PUC, em Porto Alegre, e costumávamos construir inúmeros projetos, de peças de teatro a grandes teorias filosóficas, que morriam dias depois. Mas com o projeto da revista chegamos a convencer pessoas, reunir textos, e levar a coisa adiante por alguns meses. Depois, não sei por que, a ideia morreu. Mas ficou a vontade de publicar; e quando voltei a morar em Florianópolis já tinha alguns livros em mente, traduções, e uma certa obsessão em montar uma editora. Cheguei a consultar gráficas, conferir registros e coisas afins, mas por fim, achando que tudo era muito complicado e caro, acabei recorrendo à velha fórmula do “faça-você-mesmo!”, tendo em mãos uma caixa de disquetes e rodeado pelos fantasmas dos simbolistas e decadentes.
FM: Embora tenhas inicialmente pensado em recuperar livros ligados ao Simbolismo, o catálogo das Edições Nephelibata avança além disso, mais preocupado com a recuperação de livros raros do que propriamente com títulos ligados a alguma estética em particular. Além do mais, há esse cuidado, ao mesmo tempo, de trazer para o leitor brasileiro títulos de autores estrangeiros de grande expressão que curiosamente têm pouca atenção por parte do mercado editorial. Mas esta é uma observação minha. Gostaria de saber de ti, de teu plano editorial, de como desenhaste a concepção editorial que resulta hoje em valioso catálogo.
CP: Quando morei em Porto Alegre, apesar de já conhecer o monumental Panorama do A. Muricy, eu não conhecia uma boa parte dos autores de quem ele fala, mas tive a sorte de encontrar na biblioteca da PUC as obras completas de B. Lopes e Pernetta, obras de Gonzaga Duque e Rocha Pombo, entre outros. E como um autor leva a outro, acabei encontrando em sebos autores como Ernani Rosas, Xavier Marques e Junqueira Freire, um romântico que é para mim um dos melhores poetas do país. Isso, aliado a leituras anteriores, levou-me posteriormente a querer publicá-los, já que quando se publica qualquer desses autores é sempre naquelas feias edições patrocinadas por instituições e com a grafia atualizada. Daí surgiram as edições de Xavier Marques, João do Rio, o Arquivo Decadente e em breve dois livros de Adelino Magalhães. Por outro lado, os amigos de primeira hora e novos conhecidos contribuíram com coisas inéditas e valiosas, como as traduções de Kaváfis, Ritsos, Seféris, Campana, Delmira Agustini, Baroja e Jaspers. E a partir daí foram surgindo os inesperados e o catálogo foi se encorpando e se enriquecendo. O que significa que de algum modo desenhou-se por uma junção de acasos. Mas sendo um leitor incansável e tendo trabalhado com livros usados por alguns anos, adquiri um pouco de conhecimento dos livros que são mais difíceis de encontrar e para os quais há um público leitor bastante fiel. E logo percebi a inexistência de autores que interessariam a esse público que ainda não tinham sido editados no Brasil, ou as edições existentes já se tornavam raras. Com o passar dos anos, das distintas contribuições que foram surgindo, perdi um pouco de vista esse meu objetivo, que é paralelo ao resgate de autores brasileiros. E desde o ano passado tenho me voltado para isso. E em breve haverão de sair alguns títulos de autores de literatura fantástica, como Lovecraft, Lugones, Schwob, Bierce, Ruben Darío, Villiers de L’Isle-Adam…
FM: Como acreditas que as Edições Nephelibata atuem como opção de mercado no Brasil. Costumas dizer que não és um editor e sim um artesão, mas a verdade é que os livros são editados e comercializados. Como articulas sua circulação, acompanhamento de vendas etc?
CP: Quando trabalhei com venda de livros usados, dentro de universidades, percebi uma coisa: sabe onde se encontram os alunos da área de “humanas” menos interessados em livros? Na pedagogia! Terminei recentemente um doutorado em literatura: tive professores que conhecem tanto de literatura quanto eu entendo de mecânica de ônibus espacial. O quadro geral da leitura no país é desagradável. Li recentemente acerca de uma pesquisa que indica que no Brasil o número de não-leitores chega a 77 milhões. Há alguns anos a porcentagem de leitores era algo por volta de 25%. Se você exclui os leitores de informação, leitores de jornais e revistas, sobram poucos leitores de livros. E dentre esses leitores de livros, se você tira aqueles que só leem livros didáticos ou “best-sellers”, o número de leitores de boa literatura no Brasil é muito pequeno! Daí o fato de grandes editoras não editarem determinados autores de expressão internacional. Eles não têm leitores no país. Eu publiquei um volume de contos de Villiers de L’Isle-Adam, autor que já foi publicado pela Iluminuras, Edusp e Edufpr. Mas se você for perguntar para qualquer dessas editoras se publicariam um novo título de Villiers sem apoio financeiro, todas responderiam: “não!”. Porque é um grande autor que não tem leitores no Brasil. Mas é um dos títulos mais vendidos da Nephelibata. Por quê? Porque 50 leitores de Villiers no Brasil para mim é significativo, mas para uma editora que imprime 1000 exemplares, 50 leitores significa um fracasso de vendas! Eu não gosto dessa palavra, “mercado”, mas para lhe responder: a Nephelibata atua dentro de uma fração muito pequena do mercado editorial brasileiro ao publicar, na maioria, autores que não valeria a pena publicar em uma escala, digamos, “industrial”. De novos a velhos autores. Um autor como Ruben Darío dispensa apresentação em todo o nosso continente, mas aqui no Brasil é uma minoria que o conhece. Nenhuma grande editora se empenharia, sem financiamento, em editá-lo. Mas para a Nephelibata vale, porque ela está direcionada para essa minoria de leitores que gostaria de ler os contos fantásticos de Darío e não o encontrava em português. O objetivo então é atingir um público leitor que fica, de certo modo, à margem das grandes tiragens. Mas isso não significa, obviamente, que a Nephelibata deixe de publicar autores de amplo público leitor. Até prêmio Nobel de literatura está no seu catálogo.
Agora, porque prefiro ser considerado um artesão em vez de editor. Pense em editores como o Sr. Victor Civita, o Sr. Schwarcz ou os Srs. Charles Cosac e Michael Naify. Que tenho eu de semelhança com esses empresários? Eu que sou filho de um analfabeto e de uma empregada doméstica? Gosto dos livros editados por eles; sem dúvida parte de minha formação é devida à leitura de livros editados por eles, mas quanta distância entre eles e eu! Desconfio que eles nunca costuraram um livro na vida. No Brasil não temos uma tradição de editores, como tem na Itália, por exemplo. O que sempre tivemos aqui, na edição de livros, foram empresários. Não julgo se isso é bom ou ruim, mas sei que não sou um empresário; poderia ser um “micro”, mas não quero ser. Sinto-me muito mais próximo do Sr. Robson Achiamé, do Sr. Plínio Coelho, da Imaginário, ou do Sr. Cléber Teixeira, da Noa-Noa. Mas mesmo entre esses, acho que só o Sr. Cléber sujou suas mãos na tinta de impressão. De certa perspectiva, sim, somos todos editores. Mas para manter a distinção necessária, prefiro ser considerado um artesão. E os livros são comercializados, claro, e não devem em nada, na aparência, a qualquer livro editado de forma industrial. Acho que a diferença principal está mesmo na tiragem, que na Nephelibata é sempre pequena.
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FM: Não resta dúvida que reside aí certo atrativo, na costura, na manufatura, um aspecto que muitos podem ver como excessivamente romântico em plena época de impressões on-demand, tecnologia gráfica de baixo custo, claro, também com a maquiagem de vendas, complexidade nas relações entre autor/editor no quesito prestação de contas etc. Onde eu creio que a Nephelibata se torna mais expressiva é no que diz respeito à oferta de conteúdo, sua sensibilidade para recuperar obras cegadas pela ganância imediatista de mercado.
CP: Sim, são aspectos distintos: manufatura, pequena tiragem e conteúdo. Eu gosto da ideia de pequena tiragem. Mas a questão da manufatura, não acho que seja importante, não. Eu continuo fazendo de forma artesanal por hábito e pela facilidade de fazer pequenas tiragens, mas não penso, de forma alguma, que um livro artesanal tenha mais valor do que um industrial. O mais importante em um livro é seu conteúdo. Quando digo que me sinto mais próximo da Achiamé, Noa-Noa e Imaginário é também pela ideia de conteúdo. Grandes editoras, que podem publicar muito, acabam publicando de tudo; as pequenas (as melhores pelo menos) acabam sendo seletivas e criam um norte editorial que as caracteriza. E não se trata de ficar com os “restos”, como certa ingenuidade poderia levar a pensar, mas de, por não se estar subordinado de modo absoluto ao mercado, poder ofertar um conteúdo diferente. Além disso, grandes editoras funcionam de forma empresarial, onde os editores são funcionários encarregados de fazer o contato com os autores/tradutores. Nas pequenas, o editor faz tudo, e isso o leva a ter uma relação mais afetiva com os livros e reflete, creio, no conteúdo editado. Mas, independente do que pensam os outros, sou com certeza um romântico em todos os sentidos da palavra: do mais trágico ao mais patético.
FM: Já é possível fazer uma avaliação da repercussão crítica das Edições Nephelibata?
CP: Não sei se isso já é possível. Sei apenas que eu seria a pessoa menos indicada para fazer esse tipo de avaliação. Mas há fatos que, mesmo sendo insignificantes para alguns, são inalteráveis. Livros de autores como Pío Baroja, Baldomero Lillo, Dino Campana, Giánnis Ritsos, Aldo Pellegrini, entre outros, foram editados no Brasil pela primeira vez na Nephelibata. São autores pouco conhecidos aqui, mas em seus países de origem, assim como em outros países do mundo, são bastante conhecidos. Além disso, por exemplo, as edições que estão prontas para sair de H. P. Lovecraft, Os fungos de Yuggoth, tradução de Nicolau Saião, e A música de Erich Zann, tradução de Renato Suttana, como todos os demais títulos atuais, são impressos em papel de qualidade e em uma fonte favorável à leitura. Lovecraft é um autor bastante publicado no Brasil, mas todas as edições que conheço são em papel branco com letrinhas miúdas. Leitores inteligentes sabem que esse tipo de publicação cansa os olhos e torna a leitura maçante. Desde o início eu me preocupei em fazer livros que fossem agradáveis de ler, e atualmente, mesmo com um alto custo, procuro manter mais a qualidade do livro do que o lucro sobre ele. Contrariando desse modo a comum lógica empresarial que visa o menor custo com o máximo de lucro. Qualquer repercussão futura que a Nephelibata possa ter, creio que passa por aí.
FM: O catálogo da Nephelibata está aberto a sugestões editoriais? O que exatamente deve ser ofertado a este catálogo? A ideia aqui é antecipar uma triagem que desperte a atenção, em especial, de pesquisadores de um veio literário que interesse diretamente ao teu catálogo.
CP: Sim. A Nephelibata sempre esteve aberta a sugestões. Agora, “o que deve ser ofertado”... isso é difícil de responder, pois aquilo que eu conheço e quero editar eu vou atrás e publico, e sobre aquilo que eu não conheço e que combinaria com o catálogo não posso nada dizer. Ao longo dos anos tenho recebido muitas propostas, mas boa parte não tem nada que ver com a Nephelibata. Seria o caso de se dizer: “Vai do bom senso de cada um” observar o que combina com o catálogo, mas como bem notou Descartes, quem admitiria que não tem bom senso? De qualquer modo, estou atulhado de coisas no momento e o catálogo nos próximos meses vai receber pelo menos uma dúzia de novos títulos. E dos “pesquisadores” eu quero distância! Pesquisa é uma coisa científica. Não tem nada que ver com arte. E literatura é arte. Qualquer cientista sério ri dessa pretensão “científica” dos professores de literatura, de filosofia, etc. E por outro lado, qualquer artista digno desse atributo, também ri das pretensas “interpretações” que se faz de textos literários. Pesquisadores hoje estão todos subordinados às instituições que os financiam e que, por vez, cobram um tipo de “pesquisa” baseada (obviamente) em métodos científicos, e isso gera umas porcarias de textos que só servem para ganhar títulos acadêmicos e bolsas de estudo. É lamentável, mas é a realidade da atual “fôrma” acadêmica.
FM: Há um folder que utilizas para difusão que indica a reunião de plaquetas em uma caixa. Este é um plano editorial novo, trabalhar com caixas? Fale do novo espaço, “O abominável Prado” (http://oficinasnephelibata.blogspot.com/).
CP: Não, é um plano antigo, mas de realização atual. No caso das plaquetas é algo específico. Eu comecei a fazer as plaquetas para aproveitar sobras de papel, mas com o tempo deixaram de sobrar papéis e as plaquetas passaram a ter um custo alto e com desperdício de papel. Além disso, é algo muito trabalhoso. Então decidi acabar de uma maneira, digamos, elegante, fazendo uma caixinha para as oito plaquetas e vendendo-as todas juntas. Isso restringe o acesso e consequentemente o trabalho, e elas permanecem no catálogo. Mas as caixas acompanharão os volumes maiores. De início, os dois volumes do Borges e em breve do Kaváfis. E alguns títulos estarão saindo com uma luva simples, com um logotipo de dez anos da Nephelibata.
O novo espaço virtual é mais pessoal. Criei para divulgar alguns textos meus e também para gerar elos com outras páginas de amigos, de revistas e outras coisas interessantes que há na internet. Essa coisa de “editor” joga sobre os ombros da gente certa responsabilidade, e apesar de lidar com uma boa quantidade de pessoas sérias, de escritores a leitores, há em tudo isso um lado lúdico. Ainda que não seja possível delimitar a fronteira, tentarei deixar o lado profissional mais na página da Nephelibata e o lúdico nesse novo espaço, que tem esse nome justamente porque sei que muitos me consideram “abominável”, injustamente eu diria, mas sou suspeito para afirmar isso.
Veja também o blog da editora!!!
http://edicoesnephelibata.blogspot.com/
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*Floriano Martins (Ceará, 1957) é poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige o Projeto Editorial Banda Hispânica, dentro do qual circula a revista Agulha Hispânica (www.jornaldepoesia.jor.br/BHAHentrada.htm) e colabora com o DC Ilustrado. Contato: bandahispanica@gmail.com.
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