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ANA CRISTINA CESAR REVISITADA:
três olhares distintos*

 

 por CARLITO AZEVEDO e LEONARDO MATINELLI

 

/* Sebastião Uchoa Leite, Cacaso e Armando Freitas Filho/

 

 

Extraído de

 


POESIA SEMPRE.  Ano 12. Número 18. Setembro 2004. Revista trimestral de poesia.  Editor Luciano Trigo.   Rio de Janeiro, RJ: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.  Ilus.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

Quando a vida de um poeta parece rivalizar em beleza com a letra do poema, quando ambas coincidem numa imagem histórica ao mesmo tempo sedutora e distante, um mito de amplas consequências ressurge na literatura. No caso de Ana Cristina Cesar, o caráter mitológico de sua figura literária foi realçado pelo trágico suicídio aos 30 anos — episódio que tanto chocou seus colegas de geração, além de multiplicar o número de leitores e curiosos em torno de sua obra (reunida apenas parcialmente em vida. sob a rubrica de A teus pés). "Estou bonita que é um desperdício", lê-se num dos seus textos mais conhecidos; textos onde a voracidade voyeuse do leitor é. na maior parte das vezes, frustrada por um emaranhado de pistas falsas, garantindo a dignidade póstuma dapersona lírica.

Não que tal dignidade possa permanecer ilesa ad eternum. Sabe-se que na construção de um mito costumam afluir discursos de variadas fontes, tão ardilosos quanto arriscados — a investigação biográfica, o elogio romântico, a poesia de homenagem. Após sua morte, em 1983, Ana Cristina Cesar tem sido alvo recorrente de muitas teses, dissertações e ensaios, além de inspirar poemas que poucas vezes estiveram à altura de seu tema.

Alguns desses ensaios e poemas, entretanto, parecem transcender a mediocridade laudatória, estabelecendo um diálogo mais produtivo com a poética de Ana Cristina — o que revela, por outro lado. sua importância como interlocutora para os contemporâneos. E o caso da tese pioneira de Maria Lúcia de Barros Camargo. Atrás dos olhos pardos, só recentemente transformada em livro (Argos Universitária. 2003). É o caso de pelo menos três poemas dedicados a Ana Cristina por poetas que com ela conviveram mais ou menos intensamente.

Destaquemos inicialmente o nome de Sebastião Uchoa Leite, cujo poema "Duas visitas ", datado de 1987, foi publicado em Cortes toques, daquele mesmo ano, e posteriormente incluído no volume Obra em dobras (coleção Claro Enigma, 1988), onde reunia toda sua poesia até então. Leiamos o poema:

 

Fui visitá-la

com o meu black book

(minha real Penélope era Drácula).

Mostrou-me o lav out do seu.

"Engraçado" eu disse "os seus

em cima e os meus embaixo:

é a simetria pela inversão".

Telefonou:

 

"Gostei muito

do seu lúgubre livrinho preto".

 

Cinco anos depois foi a vez de ela me visitar. Enquanto fiz um café ficou de pé

olhando o canal e o mar em silêncio.

Isto foi um ano antes do salto.

 

O black book a que se refere Sebastião é Antilogia, livro que lançou em 1979 — ano da "primeira visita" narrada pelo poema, como veremos. O volume, com caprichada produção da editora Achiamé, lembrava intencionalmente um pequeno esquife, e suas ilustrações eram extraídas de The Annotated Dracula (New York, Ballantine Books. 1975); de fato, a figura do vampiro era uma das mais recorrentes no livro (daí, dentro do poema de Sebastião, a paródia do verso de Ezra Pound em E.P. Ode pour Telection de son sepulcre, In: Hugh Selwyn Mauberley. "Sua real Penélope: Flaubert").

 

Ao passar os olhos pelo livro do colega, Ana Cristina retribui mostrando o lay-out de seu Cenas de abril. 1979 (daí podermos situar nesse ano a tal primeira visita), o que teria provocado o comentário chistoso de Sebastião ("Engraçado" eu disse "os seus / em cima e os meus embaixo: lê a simetria pela inversão").

 

0 assunto é, aparentemente, diagramação — uma vez que os poemas de Antilogia estão situados na parte inferior da página, deixando amplos espaços em branco no alto, enquanto os poemas de Cenas de abril estão dispostos no alto da página, deixando amplos espaços na região inferior. A estrofe se fecha com o comentário da poeta: "Gostei muito do seu lúgubre livrinho preto". De novo, a materialidade do livro é preferida à nomeação ("black book". "lúgubre livrinho preto", nunca Antilogia). Discrição, humour, coloquialidade: características inerentes ao estilo de ambos, ainda que sob filtros diversos (intimistas em Ana, textualistas em Sebastião).

 

Voltemos ao poema. Se a primeira estrofe visita é animada por diálogos e troca de presentes (livro contra exibição de futuro livro), já a segunda é regida pelo silêncio. 0 poeta prepara um café enquanto ela. "de pé", observa "o mar e o canal". A referência final ao suicídio é feita sem o menor sinal de estardalhaço: "Isto foi um ano antes do salto". Como se a datação ("cinco anos depois", "um ano antes") fosse mais importante que a morte propriamente dita.

 

Após uma leitura fiel do texto, é preciso contextualizá-lo. Ana Cristina Cesar fazia parte, ou pelo menos durante algum tempo quis ou se permitiu fazer parte, de uma certa geração poética, a geração marginal dos anos 70, que tinha no vitalismo uma de suas principais bandeiras. Vitalismo este que Sebastião não cansava de ironizar, sentindo-se muito distante daquele tipo de atitude. Numa entrevista a Daniel Augusto para o documentário Mapas Urbanos, Sebastião afirma-o claramente, ao comentar Isto não é aquilo, seu livro posterior a Antilogia: "Com Isto não é aquilo (1983), essa coisa se tornou mais anárquica. E o momento mais anárquico da minha poesia. Talvez por isso eu tenha sentido necessidade de colocá-lo em compartimentos estanques, designados por quatro palavras: "Isto". "Não", "É", "Aquilo". Na minha cabeça. "Isto" era aquilo que eu estava vendo, aquilo que eu sentia na minha cabeça, a poesia, a tendência metapoética. "Não" é a exatamente a negação do poético e do existencial, no qual eu brinquei um pouco com o vitalismo da geração que veio depois de mim e que fez a poesia marginal. Eles exaltavam muito a vida e eu fiz uma poesia antivitalista."

 

0 poema que abre a seção Não é ainda mais explícito: "eles dizem que se deve defender a vida é a mensagem deles / mas a morte  é tão metafórica  e sexy é tesão certa" (Pequena Estética). Texto que resume sua postura irónica diante do vitalismo setentista, e que já se insinuava desde Antilogia, o "lúgubre livrinho preto" que não por acaso se inicia com uma epígrafe tomada ao poema-epitáfio de Tristan Corbière. fechando-se com um laforguiano auto-epitáfio ("aqui jaz para o seu deleite/sebastião/uchoa/leite").

 

Aquilo que Sebastião percebe de saída em Duas visitas, escrito quatro anos depois do suicídio da autora, é que as vertentes aparentemente opostas dele e de Ana poderiam considerar-se "simétricas pela inversão". Afinal, os dois eram declarados "vampiros" de versos alheios: suas práticas poéticas, nada espontâneas, eram regidas por rigorosas estratégias de roubo, montagem e colagem. Contudo, a proximidade declarada no primeiro encontro se perde no caráter melancólico da segunda visita, onde o traço mais notório é a situação de mutismo e perplexidade em que se encontrava a poeta, apenas a um ano de dar o salto com que pôs fim à vida. Entre um extremo e outro, situa-se a matéria possível dos versos do poema: "depois do salto", o silêncio respeitoso do poeta diante da morte, não mais metafórica nem sexy — enfim, uma situação concreta, real, portanto impronunciável. Como ele mesmo já havia notado, na penúltima peça do seu "black book": "enquanto se pensa a respiração suspensa / é preciso decidir / aquele momento em que solta  as mãos  para o salto" (0 corpo no ar).

 

 

A memória de Cacaso

 

O segundo poeta que consideramos importante mencionar é Cacaso, lendo-o a partir de um singelo e nada ingênuo poema, por ele dedicado à memória da amiga

 

Ana Cristina cadê seus seios?
Tomei-os e lancei-os
Ana Cristina cadê seu senso?
Meu senso ficou suspenso
Ana Cristina cadê seu estro?
Meu estro eu não empresto
Ana Cristina cadê sua alma?
Nos brancos da minha palma
Ana Cristina cadê você?
Estou aqui, você não vê?

 

Cacaso foi também protagonista de um significativo episódio literário na carreira de Ana Cristina, registrado por Carlos Alberto Messeder no livro Retrato de época (Funarte, 1981). Situação semelhante à da "primeira visita" de Sebastião à poeta; dessa vez, era Ana quem pedia uma opinião acerca dos seus escritos a Cacaso. Para tanto, mostrou-lhe alguns poemas soltos, "densos", ao lado dos seus famosos "diários", escritos numa linguagem mais prosaica e aparentemente confessional. Ao proferir seu juízo sobre o material apresentado, Cacaso teria privilegiado os tais "diários" em detrimento dos poemas "difíceis", alegando como causa justamente o tom conversacional daqueles. Diz Ana Cristina;"(...) uma vez, eu li [pra ele] um poema meu que eu tinha ado rado fazer (...) e o Cacaso olhou com olho comprido (...) leu esse poema e disse assim: 'E muito bonito, mas não se entende (...) o leitor está excluído'. Aí eu mostrei também o meu livro pro Cacaso e [ele] imediatamente... quer dizer, aqueles 'diários' da antologia [26 poetas hoje] eram dois textos de um livro de cinquenta poemas... [e ele disse]: 'Legal, mas o melhor são os diários, porque se entende... são de comunicação fácil, falam do cotidiano ".

 

Silviano Santiago analisa este mesmo fragmento no ensaio "Singular e anônimo", incluído no livro Nas malhas das letras (Cia. das Letras, 1989) e conclui, certeiro: "Ana Cristina parece apontar para Cacaso o fato de que — ele próprio, Cacaso, é que se excluía voluntariamente dos poemas do primeiro grupo no movimento de sua leitura." Cacaso torna-se um "leitor autoritário" na medida em que atrela seu próprio juízo a um interesse ideológico: a preferência por um género de escrita intimista e coloquial, por uma certa estratégia geracional, seria, na verdade, uma mordaça como outra qualquer.

 

Malgrado as intenções francamente populistas do poeta crítico, o poema transcrito acima parece apontar em outra direção, talvez até autocrítica. diante da obra (e da vida) de Ana Cristina. 0 primeiro verso de cara nos remete a um dos poemas mais "densos" de Ana, posteriormente incluídos no volume Inéditos e dispersos:

 

I

Enquanto leio meus seios estão
a descoberto. É difícil concentrar-me
ao ver seus bicos. Então rabisco as
folhas deste álbum. Poética quebrada
pelo meio.

 

II

Enquanto leio meus textos se fazem
descobertos. E difícil escondê-los
no meio dessas letras. Então me
nutro das tetas dos poetas pensados
no meu seio.

 

Seios lançados pela janela, textos partidos “pelo meio”: poeta amamentando- se uns aos outros — "artes & manhas em geral", como um dia disse Torquato Neto. Senso em suspenso, estro sem chance de empréstimo, alma "nos brancos da palma — das mãos ou das flores póstumas, não importa: Cacaso é quem dá "a mão à palmatória", reconhecendo o caráter singular, intransferível da experiência poética de Ana Cristina Cesar. "Estou aqui, você não vê?" — como não ler no verso escrito por Cacaso como se fosse uma fala de Ana Cristina uma autocrítica, uma insinuação de que ele reconhece, a posteriori, sua cegueira diante de uma presença que não precisava piscar os olhos para nenhum leitor a fim de demonstrar-se. A beleza nos olhos de quem lê.

 

 

A elegia de Armando Freitas Filho

 

Em termos quantitativos. Armando foi o poeta brasileiro que mais se remeteu à figura de Ana Cristina Cesar em obras publicadas. Seu livro De cor (Nova Fronteira. 1988) é praticamente uma elegia em honra da amiga-musa, desde a epígrafe tomada de Ana ("Perto do coração' não tem palavra?") até grande parte dos textos, buscando pensar e digerir a emoção da perda, àquela altura tão recente. Desse impulso primário e violento resultam poemas simultaneamente duros e comoventes, como o belo Num pedaço de papel, em que se entremeiam dados biográficos e alguns truques típicos da voz homenageada:

 

Arrebatada.

Arrasou com tudo

a natureza toda.

Não deu nem para guardar

de cabeça.

Foi como se gritasse

uma música, um tom só

curto

de um nu espatifado
que passou a vida
dependurado em telefones:
foi fulminante foi uma roubada.
Agora é jogar um pano
(para não ouvir mais)
em cima desta voz caída
como se faz com um atropelado.

 

Como se vê, o poema narra o trágico suicídio de Ana sem meias-luzes, restando ao poeta tentar esquecê-lo, exorcizá-lo em poemas, calando seu eco doloroso dentro de si — numa palavra, recalcando-o (daí a imagem do pano que se joga "em cima desta voz caída / como se faz com um atropelado"). Não mais, musa, não mais.

 

Para fechar o modesto plano deste comentário a quatro mãos, escolhemos de Armando um outro poema, não pertencente a De cor, mas sim ao seu penúltimo livro, Fio terra (Nova Fronteira, 2000), cujo texto integral diz o seguinte:

 

 

Correspondência completa

 

 

Botafogo. Loja de ferragens, piso
de pedra. Ao lado, a carvoaria tinta
da gráfica antiga: tipos escolhidos
a dedo, chumbo miúdo escuro — sujo
papel de prova amarelo da capa —
onde pousa a marca do avião em preto

ou sua sombra surpreendida no chão.
Fixa, com o voo circunscrito num oval.

 

No meu colo, em carne, de dentro da saia
de flores, em alto contraste com o entorno
pesam e saltam claras pernas de bicicleta
de penugem loura, que calcam, suam,

                                               [pedalam

que eu seguro e sinto — através e digital.

 

 

Como no poema de Sebastião, a primeira estrofe trata da materialidade do  livro de poemas. Mas, avançando qualquer limite decoroso ou lamento póstumo, Armando se dispôs a pintar sem pudor e um encontro íntimo, carnal mesmo, com a musa da geração marginal. E a força de seu poema também sabe vir da disposição de se opor à poética de Ana no que diz respeito à exposição de intimidades. 0 que nela era intimidade fake nele vira outra coisa. Ao que parece, o inusitado cenário do ato físico ficava ao lado da "gráfica antiga" onde Ana confeccionou um dos seus livretos, chamado Correspondência completa — daí o título do poema. A referida "marca do avião em preto", com sei "voo circunscrito num oval", descreve exatamente a capa do livro em questão. Importante notar que não há nenhuma menção à morte da poeta, nem ao seu estado de confusão existencial à época do "salto"; agora o que saltam são apenas as "claras pernas de bicicleta / de penugen loura, que calcam, suam, pedalam", e que ele, Armando, segura e sente, de posse da cena e da obra de Ana — ainda que apenas por um instante, suspenso no ar e no tempo, "através e digital", pela escrita q o captura numa imagem fugidia, como sombra surpreendida de um avião".

 

Correspondência completa entre vozes corpos separados pelo tempo, num espaço erótico-onírico que o poema, só ele, torna possível e comunicável.

 

 

 

 

CARLITO AZEVEDO é poeta, autor de Sublimar.
 LEONARDO MARTINELLI ê poeta, autor de Dedo no ventilador.

 


 

 

 
 
 
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