VASCO GRAÇA MOURA
nasceu no Porto, em 1942. Licenciado em Direito, actividade que chegou a exercer, é autor de diversas obras de ensaio, poesia, romance, teatro, crónica, e ainda de traduções.
Lamento para a língua portuguesa
Não és mais do que as outras, mas é nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia a dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que era tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo que essa anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer do amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teu falantes
na terra em que nasceste. eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.
borges e as rosas
sonhou as rosas, rosas de ninguém
de substâncias de sombras evanescentes,
e na roda das pétalas ausentes
ficou o olhar perdido, no vaivém
das brisas no jardim do esquecimento.
tinham carne de noite e de perfume
e tacteou-as devagar, o gume
afiou-se num macio desalento
de lhes ter dado o nome: rosas, rosas
factícias alastrando o seu vermelho
de golfadas de sangue ao vão do espelho
das águas e das luas ardilosas.
e soube que o real era essa imagem
devolvida no espelho, de passagem.
Poemas extraídos da revista POESIA SEMPRE, Num. 26, Ano 14, 2007. Edição da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
INIMIGO RUMOR – revista de poesia. Número 12 – 1º SEMESTRE 2002. Editores: Carlito Azevedo, Augusto Massi. Marcos Siscar, Rio de Janeiro, RJ: Viveiros de Castro Editora, 2002. 199 p. Editora, 2001. 204 p. ISSN 1415-9767.
Ex. bibl. de Antonio Miranda
AUTO-RETRATO COM A MUSA
1.
vejo-me ao espelho a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos
os óculos poro vezes
já mais embaciados.
sobrancelhas espessas,
nada nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).
ia a passar fumando
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,
palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistura
e se você entrevê no espelho,
tingindo as suas águas
de um dúbio maneirismo
a que hoje cedo, e fico
feito de tinta e feio.
2.
quem amo o que é que pode
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado,
nem guarda-lo num livro.
nem rasga-lo ou queimá-lo,
mas pode pôr-se ao lado
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos
ou não achar. quem amo
não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago
e deixo de me ver
e apenas se confundo,
amador transformado
na própria coisa amada
por muito imaginar.
assim nem john ashberry,
nem o parmigianino.
nem espelho convexo,
nem mesmo auto-retrato.
só uma sombra que é
na sombra de quem amo
provavelmente a minha.
3.
quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço
tal parte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar.
nem rio tão contente,
contigo e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio.
quem amo tem feições
de uma beleza grave
e música na alma.
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.
é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.
SCHUBERT, D 960
1.
há uma melodia que habita rente às palavras e
sai do que as prende à morte, a terra é coruscante e melancólica
como a juventude doente. saber tudo isto em surdina,
numa espiral de saudades a que se deu ouvidos.
ah, coração ingênuo, coração aluado
nos bosques do entardecer, na terra de ninguém.
flutuar na agonia, ficaste um cão de rumor tristes,
um focinho de sangue aveludado no caderno
diário de paixões, quando a música exprime tão densos
remorsos vagabundos de viver assim
e tudo pode ser singelo, furtivo e lancinante
como uma oliveira a arder por dentro do seu silêncio.
2.
olha a sombra dos álamos: perpassa
nas água do espelho desolado, quando o vento
se enrola assim na roda de fiar.
escuta lá fora o realejo das misérias do inverno.
quem passou por aqui? quem veio de tão longe?
quem cala a cotovia nas lavras da manhã?
que lampejo entrelaça o lilás e o luto?
em que fala amorosa nos dilaceramos?
a musa ensimesmada debruça-se, pousando
a sua mão inquieta no torpor das pálpebras.
a noite cai, o nó de corpo e alma desatou-se
e há nomes que se apagam na casca de uma árvore.
*
Página ampliada e republicada em dezembro de 2023
Página publicada em novembro de 2009
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