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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MARIA AZENHA


Maria Azenha (Portugal). Foi professora universitária. Tem mais de duas dezenas de livros publicados. 

 
Oito poemas 
na rebentação das mãos

 

Afinal_

 

Gosto de me sentar imóvel

sem pensar em nada

a página é o meu observatório humano

aí faço anotações do quotidiano

falo em voz baixa

e escrevo algumas palavras de ofício

algumas resistem outras apagam-se

quase sempre a folha de papel em branco

se me perguntam porque o faço

respondo: “ não sei”

afinal é isso o que conta

 

         

À luz do dia_

 

(A verdade é uma mentira.

A mentira,uma grande verdade.)

 

Hoje encontrei um homem.

Geralmente acompanha-o uma garrafa.

Uma figura alta, passageiro nocturno com dormitório em vão de escadas.

A avaliar pelo exterior, antigo, barbas brancas, moreno e olhos amendoados.

 

Falava em voz alta.

“Comprei um filme aos ciganos, por cinco euros, na feira do relógio.”

 

Ria e gargalhava com o embrulho de fiambre que, jurando a pés juntos, seria do melhor bacalhau do mundo .

E ria, ria, olhando em todas as direcções. Não sei se por simpatia ou se pelo facto de ninguém fazer menção de lhe devolver um aceno verbal.

 

Por fim, parecendo anunciar algo como uma notícia de última hora, elevou o tom de voz e proferiu:

 

O menino Jesus bateu no Papa!

O menino Jesus bateu no Papa!

 

Apeteceu-me bater lágrimas.    

         

Há dias terminados em ão outros em ões_

 

Quem não deve não teme

alguém vai ao leme

 

il y a la grandeur et puis la merde

 

         

Como será estar morto durante duzentos anos_

 

Como será estar morto durante duzentos anos?

O que diria Sócrates?

A vida não tem sentido, quem o disse

foi Tolstoi.

E Freud? Outro cismático!

Eu que fiz análise durante vinte anos

tornei-me um humano ainda mais pessimista.

O meu analista aconselhou-me a abrir um paraíso

mas eu tornei-me político!

E aquela mulher que faz exercício todos os dias depois do trabalho

e a seguir leva para casa um punhado de sacolas do Pingo Doce?

A vida é cheia de solidão, infelicidade e caveiras dos outros.

Ultimamente têm-me passado coisas estranhas pela cabeça,

estou a ficar mais gordo e custa-me dobrar os joelhos.

Talvez um dia encontre um amor com dentes de ouro

e cheio de banhas para amortecer os desgostos.

Ora bolas, afinal para que é que servem os espelhos?

Vou passar um fim de semana a ver filmes de Manoel de Oliveira.

E se eu acreditasse em Deus ?

Talvez fosse uma boa solução!

Mas eu estou desactivado do céu.

Sou o que se chama um militante holístico.

Dizem que há um “ olho” que nos está sempre a ver

Por acaso vivi durante onze anos com um oftalmologista

e nunca me receitou óculos. Os que ponho actualmente

são para Ler livros sobre a vida-em-morto.

Tenho muitos medos. Devoro livros em Braille toda a noite.

Ando obcecado pelo tema dos esgotos.

Deve ter sido por isso que gosto de Esopo

que me ensinou um processo fabuloso para exterminar o medo.

Há uma substância química no nosso corpo

que faz com que não sejamos galinhas. E outra,

que nos faz irritar uns com os outros.

Já sei porque me irrita o governo. E os políticos e os do arco do poder.

O tema da morte é mesmo um tema assombroso.

O preço do gás está a subir.

“Todas as tentativas de suicídio são um fiasco.

Vivo abrindo as janelas e fechando o gás”.

Não sei como os mortos conseguem viver.

Mas acho que devem ser pessoas fantásticas.

         

         

O Poder_

 

 (A História repete-se sempre, pelo menos duas vezes, disse Hegel.

Karl Marx acrescentou: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.)

 

Os felinos saltam de imagem em imagem

pronunciam palavras de logro e silêncio

há vozes que não se ouvem

atravessam as rodas da noite com uma cruz

de cinzas na boca

 

e o poema vai rodando de máscara em máscara

em demência e esquecimento na jaula de um louco

 

dentro dele mesmo o inferno o mando e o medo

o Poder não sabe o peso da boca de um morto
         

         

Sentada no banco das aves_

 

No autocarro vi uma mulher de dentro para fora

Que tinha visto de fora no banco de espera.

Todas as terças me cruzo com esta mulher

Que reza o terço para dentro de um saco de plástico.

Já vi os seus olhos virados para o céu

No espelho escuro da mão com um pássaro.

Alguns homens que passam dizem que ela

Traz o número branco da morte

Buscando em vão a loucura que salva.

Esta mulher caminha descalça

Oferecendo a Deus o seu sexo

Sentada no banco de neve das aves

Num poema de Inverno.

         

         

(Des)habitada casa_

 

Com o tempo fui-me habituando a não pensar

a dar pouca importância à lógica

a largar a casa o corpo os móveis

substituindo os braços

por telas pintadas a óleo

 

não habito lugar algum

sou como árvore carregada de frutos

na penumbra

às cegas

sem destino nenhum

 

se não os colho tombam por terra

- versos diariamente escritos,

filhos sem pai nem lua -

insectos caídos do tecto

 

         

         

A três dimensões_

 

Entrego-me à volúpia dos cinco sentidos.

Regozijo-me em espreitar algumas equações

Olhar por dentro como é feito o mundo

O rapaz a quem dou estas e outras explicações

cheira mal da boca.

Começo a fumar o meu cachimbo

E vão surgindo soluções a cada andamento

que acompanha os sucessivos traçados na folha.

 

Assim no papel. Assim na vida.

 

Vai crescendo um nevoeiro entre mim e

o rapaz tem uma prótese nos dentes.

 

Vem aprender poesia a três dimensões.

 

 

 

REVISTA TRIPLOV de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 47 | agosto-setembro | 2014
© Maria Estela Guedes  PORTUGAL


 

 

 
 
 
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