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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

JOÃO CAMILO

 

 

Poeta e ensaísta, de nome completo João Camilo dos Santos, nascido em 1943. Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa e doutorado pela Université de Haute Bretagne, com uma tese sobre a arte do romance em Carlos de Oliveira. Leitor de Português nas universidades de Oslo, Rennes, Aix-en-Provence e professor convidado na Universidade de Grenoble, é atualmente professor catedrático de Português da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, onde dirige um Centro de Estudos Portugueses. A sua poesia fixa com discreta ironia pequenas micronarrativas e imagens do quotidiano, não hesitando em converter em tema e linguagem poética motivos comuns.

 

 

 

O CORVO LITERÁRIO

 

I

 

Dêem-me um corvo recém-nascido

com ar de pato inocente

(penas tristes mal alinhavadas,

biquinho muito indolente).

 

Eu penduro-lhe ao pescoço

um relógio com corrente

(de ouro, metal valioso,

para dar-lhe um ar garboso).

 

Quero que aprenda depressa

as leis da escravidão:

 

do tempo que nos destrói

com suprema ingratidão;

 

das chagas feitas na alma

pela estúpida ambição.

 

Corvo humilhado e corvo prepotente,

corvo usado como resumo

do nosso destino incoerente.

 

Corvo outro e não ele próprio.

 

Carne ilusória, irreal,

de sujeito nunca existente.

 

Corvo figura de estilo.

 

Duvido, mas acredito,

que lhe mudei o destino:

fiz um pássaro metafísico

de um passaroco assassino.

 

A obsessão da mímese não o consome.

Mas apesar de literário, ele, corvo ainda,

parece que voa, se queixa, mata e come.

 

II

 

Um avião levantava voo

por cima da imensidão da água baça

(pista de aeroporto mal delimitada,

perturbada nos limites pelo bater das vagas)

 

E mil corvos voavam nas suas asas

de corvo metáfora, corvo símbolo,

corvo simplesmente alegoria.

 

Ruídos de asas e de bicos? Gritos e lamentos?

Dos séculos passados regressavam, inconsoláveis,

os fantasmas reais e irreais do sofrimento.

 

Eles comem tudo? Ou nunca comeram nada?

 

Corvo negro do infortúnio? Ou ave de

brancura imaculada, tingida por acidente

no mar sanguinolento do petróleo?

 

Corvo americano, corvo inglês ou corvo

iraquiano?

 

Corvo herói colorido de banda desenhada

ou corvo do jornal da noite com a face

massacrada?

 

E a água a suspirar, a bater na rocha dura.

 

O tempo nunca pára. Com a morte,

porém, sempre chega a ilusão da cura.

 

 

 

 

POESIA SEMPRE.  Revista da Biblioteca Nacional do RJ.   Ano 1 – Número 2 – Julho 1993.  Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Ministério da Cultura – Departamento Nacional do Livro.   ISSN 0104-0626m   Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

Tu mesmo

 

Vem ter comigo ao refúgio do silêncio e do abandono
a recordação do rosto da amada. Sublime
entre todas, as suas mãos não se detêm nos objectos
perecíveis. Solitário entre todos, o seu corpo abandonou
no entanto, por minha causa, o lugar secreto da casa.
No momento da dolorosa paz é a sua pele que em sonho
creio tocar. E na noite desolada a mágoa atenuou-se
durante um instante, cheguei a ouvir, alucinado,
repicar os sinos da igreja da minha aldeia.
Quem nasceu ou morreu, perguntei-me, atónito.
Mas quem podia responder-me, quem
se interessaria o bastante pela minha inquietação?
Tu mesmo, ouvi-me murmurar, és o recém-nascido
e aquele que acaba de expirar, tu mesmo e mais
ninguém. E para pôr limites ao delírio, os olhos
da amada fixaram-me intensamente no escuro,
eu senti as suas pernas encostarem-se às minhas
e o calor da sua pele inflamar o meu sangue.

 

 

Página publicada em junho de 2015; página ampliada e republicada em novembro de 2017.

 


 

 

 
 
 
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