Fonte: oeiras-a-ler.blogspot.com
FERNANDO PINTO DO AMARAL
(Lisboa, 12 de Maio de 1960) é um poeta, crítico literário e professor universitário português.
Filho da popular actriz dos anos 40, Maria Eugénia. Frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, desistindo a meio do curso para optar pelas Letras.
É, desde 1987, professor do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Colaborou em revistas como Ler, A Phala, Colóquio/Letras e o jornal Público.
Traduziu As Flores do Mal, de Baudelaire, que lhe valeu o Prémio do Pen Club e o Prémio da Associação Portuguesa de Tradutores, e Poemas Saturnianos de Verlaine. Traduziu ainda toda a poesia do argentino Jorge Luís Borges.
Página web: http://www.criticaliteraria.com/Fernando-Pinto-Amaral
Fernando Pinto do Amaral, representante oficial de Portugal na I Bienal Internacional de Poesia de Brasília, na sessão magna do evento. Patrocinado pelo Instituto Camões.
FRONTEIRA
É doce
a tentação do labirinto
assim que o sono chega e se propaga
ao contorno das coisas. mal as sinto
quando confundo a onda sempre vaga
deste falso cansaço que regressa
ao som da minha estranha e dócil fala
cada vez mais submersa como essa
pequena luz da rua que resvala
plo interior da noite. É quase um sonho
A respirar lá fora enquanto o quarto
se dilui na fronteira que transponho
e afoga a consciência de onde parto
agora sem direito nem avesso
no incerto momento em que adormeço.
ARTE POÉTICA
Palavras,
só palavras, nada mais
que a vã matéria, o seu sentido
eco de muitos ecos, repetido
reflexo de poderes tão irreais
como essas emoções graças às quais
terei de vez em quando pretendido
dizer um só segredo a um só ouvido
ciente de que nunca são iguais
os segredos e ouvidos que procuro
às cegas neste mar sempre obscuro
onde a voz desagua como um rio
sem nascente nem foz - apenas uma
incerta confidencia que se esfuma
e só foi minha enquanto me fugiu.
IV
16.
Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte
que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te
fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto
onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?
(De A Escada de Jacob - Assírio & Alvim)
A ÚNICA RESPOSTA
Jantáramos os dois pela primeira vez:
amizade ou amor, pouco interessava
desde que alI estivesses. O meu mundo
ia mudando à medida do teu,
a cada gesto vão da vã conversa
antes que fôssemos pIo Bairro Alto
e enfim o Lumiar, a tua casa.
Eu podia contar uma história, dizer
como aquele rosto atravessava o meu -mas não,
«nada de narrativas, nunca mais».
Apenas a certeza de estar morto
há tanto tempo, que já não me lembro
de cor nenhuma dos teus olhos. Não,
já não existe o dia nem a noite
e este silêncio deve ser talvez
a única resposta. É bem melhor
ficar à espera de que não regresses.
(De A Escada de Jacob - Assírio & Alvim)
ZEITGEIST
Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: “Então é assim”,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.
Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, pra conservarem
o equilíbrio físico e mental.
Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.
Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
“tropeço de ternura”, queria ser
pelo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa - ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.
(in Poesia Reunida, 1990-2000)
SEGREDO
Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.
(De Às Cegas)
Á CHEGADA DO INVERNO
Nem sempre
a vida acolhe ou alimenta
os nomes do passado, o seu abismo
repetido num sonho, na mais lenta
assombração, no mais íntimo sismo
Do que chamamos alma. Não existo
sem essa febre mansa que relembro
enquanto as nuvens cobrem tudo isto
com o frio escuro de um dezembro
Longe de mim, de ti, de qualquer lei
ou juízo a que dêmos um sentido:
o que finjo saber é o que não sei
e as palavras colam-se ao ouvido.
***
SONETOS. v.1.Jaboatão dos Guararapes, PE: Editora Guararapes EGM, s.d. 154 p. 16,5 x 11 cm. ilus. col. Editor: Edson Guedes de Moraes. Inclui 148 sonetos de uma centena de poetas brasileiros e portugueses. Ex. bibl. Antonio Miranda
Página publicada em julho de 2008 para a I Bienal Internacional de Poesia de Brasília.
Página ampliada em julho de 2018.
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