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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FERNANDO DE CASTRO BRANCO

 

Mestre em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, pela FLUP, nasceu em Duas Igrejas, Miranda do Douro, em 1959. "Alquimia das Constelações", o seu primeiro livro de poemas, saiu em 2005.


BRANCO, Fernando de Castro.  A caminho de Avoriaz.  Maia, Portugal: Cosmorama, 2011.  86 p.  14,5x19,5 cm.  Col. A.M. 

 

A Caminho de Avoriaz

ou o 3° poema com bicicletas

 

A caminho de Avoriaz, quase nos quarenta

em anos que não em velocidade,

sobes no terceiro pelotão, espécie

de maltrapilhos fragmentados

serra acima. A quinze minutos

 

de Alberto, e do jaune no maillot

onde todo o sol se esconde,

balanças o corpo gasto para um

e outro lado, sobre uma e outra

perna, como um barco à deriva

que faz que anda mas não anda.

 

- Pára, homem, pára, como é possível

que não me ouças. Lance. Manda foder

o pelotão e de caminho a bicicleta.

 

Olhos perdidos não sei se no pico da montanha

se em Deus, alheio aos gritos esparsos

que resistem como tu: Armstrong, Armstrong.

 

A boca espuma, que um homem não desce

do Olimpo para uma última escalada

por dá cá aquela palha. Ninguém

ressuscita assim da morte. Lance,

e nenhumas cinzas são boas para se renascer.

 

Ou a vitória talvez seja outra, invisível,

surda aos gritos de quem se desespera

pelo risco branco no topo da montanha

e a montanha a subir talvez não seja esta

 

que se inclina na rota de Morzine

e ameaça parar no céu. E seja outra,

que não subiste nos outros sete Tours

e sobes agora por ti dentro a descer.

 

 

Cartografia

 

Deverei explicar, antes que este sol me esqueça,

que os mortos não necessitam da inútil cartografia

dos meus versos, e muito menos

das cartas tristes que envio

ao sono dos injustos.

Apesar disso continuaremos

a ajustar as contas

de inconclusivas e velhas negociações.

 

Estes são dias difíceis para epitáfios

e inscrições. Não há tempo para lapidar

palavras duras e pesadas. Dias de guerra

em que os mortos disputam os provisórios cubículos

de inflacionados cemitérios municipais

até domicílios mais consistentes. Mas sobre isso

também ninguém assina como fiador

ou passa certificados de garantia.

Cinzas precoces é o que se pede

aos amantes do fogo.

 

Enquanto não parto nem chego,

passo pelas tardes de leve, procuro a quieta.

serenidade das pedras e a inquieta

trajectória dos pássaros. Ficarei por aqui

o tempo que a sorte me conceder.

Quase sempre isto me basta.

Quase sempre isto me falta.

Sinais do tempo. Tempo de sinais.

 

 

BRANCO, Fernando de Castro.  Assinatura irreconhecível.   Maia, Portugal: Cosmorama, 2010.              80 p.  14,5x19,5 cm.  Col. A.M.

 

ESTAR OU NÃO ESTAR

 

Deus nem sempre dorme. Como os homens

preza o seu momento eterno. Às três da manhã

segue no rasto da minha insónia e abre-me

os céus como quem escancara as portas

da casa a um velho amigo. Deus existe,

 

mesmo no chão é possível tocar-lhe. Deu-nos

o vómito e a náusea, o sono e a fuga.

Ser ou não ser, eis uma falsa questão

do ponto de vista deste filósofo

de Domingo. A estar ou não estar

se resume o meu problema:

ontológico ou topográfico, não sei bem,

nem me preocupa muito.

 

Deus existe no que é e no que não é,

bode expiatório por acção ou omissão.

Tudo isto que apodrece

nada tendo a ver comigo

só pode ter sido culpa dele.


 

EVA SAZONAL

 

Se hoje aqui estivesses, à mão de semear

o cansaço, a vaga dor

de quem não tem assunto certo

para o próximo poema,

talvez soubesses que há sempre uma noite

quente que derrete o gelo do uisque

mas deixa intacto outro gelo mais feroz.

 

Chegarás amanhã. Entretanto a noite

há-de mastigar o caroço, os cães

longínquos darão sinal

e o sono levar-me-á

para uma estranha manhã

 

onde no espelho não reconhecerei

o estranho da véspera, a tentação

de onde saí incólume tão só

por falta de maçã. Ou de serpente.

Não sei bem.

 

 

BRANCO, Fernando de Castro.  A carvão.  Poesia reunida. Maia, Portugal: Cosmorama, 2009.  323 p.  16x23,5 cm   Col. A.M.

 

SOL INTRUSO

 

O Verão deixou-nos este rasto de sol esquecido

no meio do Inverno. Como se um fio de sangue

aquecesse a morte nos dedos.

A meio da manhã escondo-me nesta luz, aqueço-me

a este calor sem rumo. Surpreendo pirilampos nus

recolhidos na intimidade de suas luzes

de chão. Também esta claridade nasceu por engano

no meio do frio, e eu procuro reconhecer

nesta meteorologia de desencontros

a minha própria nuvem.

 

 

ASSERÇÕES

 

É tarde. Deste lugar não pretendo os pirilampos.

Limitar-me-ei a desligar as luzes e a algumas asserções. Eis

pois: alumiar o eclipse, fixar o raio, deixar a elipse dizer

o que cala. O rosto da peste, o recorte do frio,

a lepra dos dias.

 

Nada vos pode salvar, ó ímpios.

Muito menos as palavras.

 

E contudo elas são a ave

por onde alegremente subis.

 

Com asas de abismo.

 

 

 

BRANCO, Fernando de CastroCarta a mim mesmo  poesia 2011-2014.  Introdução Luis Adriano Carlos.    Maia, Portugal: Cosmorama Edições, 2016.   210 p.  15x18 cm.  Capa (em relevo): Ida Cruz.  Ex. bibl. part. Antonio Miranda    N. 09 246 

“Profundamente disfórica é a experiência de tempo, associada aos espaços — que o poeta descreve com uma impressiva inteligência emocional — e à conscieência da temporalidade. Há um futuro que vem “disfarçado de bala lenta./ que mata como quem intima a viver”.. JOSÉ RUI TEIXEIRA

 

Fobias

 

Talvez devesse reunir mais algumas cidades
(a maldita fobia dos aviões só eu sei o mal
que me faz à referência), um ou outro rio
mítico (esta secura na ribeira só torna tudo
mais desesperado), certos castelos, os restos
de um jardim romântico, uma torre


inexpugnável com princesa e tudo.

 

Mais que um túmulo onde jazem confidências,
e à terra comigo descem os segredos, sabem-no
a parca conta dos mais íntimos. O resto
é espuma de evidências, nudez de rosto
em rosto sem disfarce, mas parece mal na minha voz
esta notícia a quem deram os deuses por destino
o humilde dom de provocar por existir.

 

Enquanto mais um dia arde a frio trabalho

a paisagem por dentro, o meu novembro em ruínas

não se vê do outro lado e contudo todo ele cresce

em carne e treva; não sei como dizer

o que não possa provar com pele,

instintos ou sentidos; se me silencio

é pois na certeza de que nenhuma palavra

cumpriria nesse transe o seu dever.

 

É tão cedo e a noite sentou-se à mesa
com toda a casa ainda fora do sítio,
o mundo apanhado na traição dos dias

e nós aqui esperando que nos dissessem
qualquer coisa como fujam, é tarde. Se
puderem não regressem.
Perdi neste verão um pouco mais de mim,
um bom número de palavras, a margem
certa onde sempre vi passar as águas.
Retomo a pedra à medida que me zango

com o que esqueci; a minha fé é um lugar

de onde não parto nem chego, guardo Deus
na terra infinita da infância e o deserto

prossegue caminho a caminho
com os passos que me roubaram.

 

Escrevo versos como quem espera o fim do mundo.
Um poema é sempre um pequeno apocalipse.

 

 

Da pedagogia

De nenhuma janela observo a tristeza
dos que nasceram tarde, a angústia
dos que não têm passado e nunca
terão futuro. Arrastam o presente
de rua em rua até à noite onde
brilha o mesmo sol para todos.

A alguns deles ensinei literatura,
gramática, boas maneiras (pasme-se),
bons sentimentos, o peso dos mortos.
Também eu os levei para a rua
procurando quimeras, impossibilidades,
emprego. Uma pátria que inexiste.
É a hora, diria o outro. Mas é a hora de quê?

 

 

 

BRANCO, Fernando de Castro.  Desde Portugal.   Maia, Portugal: Cosmorama Edições, 2016.  69 p.  15x18 cm. 
Capa (em relevo) Ida Cruz.  Tiragem: 150 exs.

 

“Profundamente disfórica é a experiência de tempo, associada aos espaços — que o poeta descreve com uma impressiva inteligência emocional — e à conscieência da temporalidade. Há um futuro que vem “disfarçado de bala lenta./ que mata como quem intima a viver”.. JOSÉ RUI TEIXEIRA

 

 

Sinais

 

O próprio mar arrefeceu antes de tempo.

Caminho em pequenos passos com a água

em fundo e deixo à neblina o encargo

de inventar possíveis barcos.

 

Continuarei a dar notícias locais,

a abastecer de minúcias as hordas

de bárbaros que passam

pela pátria como coisa sua. Fazem

do dia um imenso pasto de ciladas

 

e perfídias: agridem o olhar, mancham

a paisagem e riscam no horizonte

sinais lúgubres, turvos, sinistros.

Deixarei que os passos morram nos tapetes

em sombra e silêncio um pouco mais,

e na boca ainda e por enquanto as palavras

sem som e contudo acesas.

 

(Sê sábia, ó dor, e permanece serena.)

Tomai e comei, esta é a carne

que vos dou por veneno,

é possível que seja a minha,

mas hoje nada é verdade.

 

 

 

Do nada

 

Continuam a chegar do nada, a atravessar o meu dia
como terra deserta. Alguns justos resistem

como podem, querem acreditar na remissão

das hecatombes, concedem alguns dias de trevas;
nada que a luz de amanhã não possa resgatar.

Mas tudo dura para além do razoável, as ruínas
crescem por dentro da voz e já não terão concerto,
nem há tempo que baste para um homem fugir

 

de si. Ficará a lembrança dos dias inomináveis
amparada aqui e ali pelo grosso traço de um poema.
 Olhamos pela noite os mortos que repousam

em invejável sossego, tudo o que perderam foi
ganho. Sobre eles canta a nossa razão no lugar

das lágrimas, a nossa memória renasce verde

como uma primavera. Saber que morreram em paz

é tudo o que hoje de melhor nos pode acontecer.

 

 

 

 

Página publicada em outubro de 2013. Ampliada em janeiro de 2017


 

 

 
 
 
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