HORA
O último sol desenha a janela em diagonal sobre a cama e nós
o sublime concerto à memória de um anjo
não o escuto
não a vejo
a tudo consumimos
tornozelo na dobra de meu pescoço
dedos estranhos do outro pé na boca
só existem Saturno e o vazio
para a temperatura de tua vida
NORTE
Esta era tua casa,
onde nunca entrei,
que nunca vi de dia
quando há séculos te acompanhava, tarde,
esperava que entrasses pela porta onde me detinha
e voltava, úmido de ti ainda através da noite branda, segura,
porque a certeza de tua vida e de tua carne
era um arroio de leite prodigioso e confiado.
Agora é meio-dia, azul e nuvens;
me dá vertigem entender de imediato
que esta rua, que até hoje não a conheci à luz,
foi tua antes de nos encontrarmos;
depois cheguei e duvidavas, percorreste este passeio
semanas, pensando a que nova estranha prova me submeter;
certamente olhavas aquela varanda de esquina ao decidir-se
e a noite seguinte que aqui nos trouxe juntos
nos havia encontrado misturando-nos distante.
Como em toda outra data dormiste então aqui dentro;
O que repassavas ao unir as pálpebras?
o que, ao despertar em um domingo igual a este?
Saíste, e quem pensava te seguiria com o olhar desejando-te.
Por onde agora me afasto me levaste nos olhos, nos ouvidos, na pele, nas vísceras.
Algo de minha substância se fazia matiz teu
no alvor de nosso primeiro ano.
FASE
Flutuas ante minhas virilhas em tal mistério frio
que não sei se teus pés tocam o chão
ou se curvam inermes no ar, suspensa
da nuca que me apóias no ombro,
de quatro mãos juntas sobre tua garganta,
do cheiro que às escuras busco em teu cabelo.
Penso em tua forma de costas, absorta,
reclinada em mim mesmo, frente ao vitral,
sulcada de tremores súbitos,
vendo a rua como se não entendesses
as luzes refletidas no asfalto abaixo.
Não passam quase carros a esta hora;
sem dizê-lo observamos o farol aceso
e entre eles e os dois
varanda molhada, um anel de insetos e a água amarelenta
que cai esmiuçada.
Vamos dormir.
Te ouço urinar detrás da porta mal fechada.
Agora teus passos.
Cobertos de lençóis e sombra pulsamos frente a frente
com a fortuna do tato sem desejo;
te surgem ângulos, frescores, consistências
que não soube há pouco nem há muito;
nunca foi teu lábio polpa tão simples,
e a saliva tão clara. Te entressinto
mais como eras sem mim,
quando tua existência, ao recordá-la, me inundava
a três segundos do cedo despertar sozinho,
enquanto eras provável nada mais
(e aqueles instantes brancos já me esqueceram).
Que gestos insinuamos agora, que palavras
nasceriam, que ritos parecem quase vislumbrar-se
de algo que começa quando o corpo se cumpre,
e que é também do corpo,
e que o dormir devora, cru, sem que se mova.
CAPTURA
- Solta-me, por piedade, que ando fugido.
Sou do exército de macacos
posto há muito a teclar casualmente
em robustas máquinas Underwood
a fim de ilustrar quantíssimo se tarda
em gerar ao acaso as obras de Shakespeare.
(Questões tais como se Deus serve para algo
e outros tédio de tal índole
- porém nos dão bananas que a Igreja paga religiosamente.)
Hoje comecei pondo sem fixar-me
(e em isabelino)
A domesticação do musaranho,
segui enchendo de letras laudas e laudas,
porém chegou o inspetor, um frade dominicano,
folheou o que eu já havia feito
e empalideceu tanto
que preferi fugir. Solta-me já.
Deixei-o ir, certamente.
FECAL
Para D. Margarita Michelena
Tanta coisa como estudas, e ninguém se interroga
pela merda dos seres mitológicos.
Era larga pasta a do Minotauro?
bosta ovoide a da Quimera?
Eras mistas, aquosas, esbranquiçadas, como de ave
as dejeções da Hidra? especialmente pestalocis
as da Esfinge? Foi obstipada Cila?
O que aclarar a respeito de Tífon?
- se Nômio nos parece malômano, entre outras coisas,
informa muito pouco acerca de suas águas maiores.
Fontas, as eternas; os vasos, as inscrições, a coleção Teubner
e há outras. Que perfurar cartões. Paralelamente
conviria estabelecer o corpus dos coprólitos
encontrados na bacia subterrânea,
Ásia Menor, o Euxino e mesmo Panticapea, se fosse o caso.
Ir, cada manhã, do manuseio respeitoso
ao banco de dados, e vice-versa.
Levar uma peneira de Boas na canana
e, enquanto não se veja claro, buscar funções inéditas
com aperitivos, sobremesas e outros materiais não processados.
Vos direis, congêneres, o que a meu juízo ocorreu
(e se os resultados das investigações computadorizadas discordam,
pior para as investigações computadorizadas):
os excrementos de cada um daqueles
entes garantiram iguais parcelas do escrever clássico,
gêneros novos brotaram em solos ferazes
diferentemente, e assim tivemos tragédia e comédia,
épica e lírica, história, eloquência,
mais a filosofia, colheita inexaurível.
Farejando as clâmides para distintos estilistas
- como esses conhecedores que cheiram as cortiças do conhaque -
poderíamos conjeturar, apostar.
- Ego, inquit, poeta sum…