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DONNY CORREIA
Extraído de:
TODO COMEÇO É INVOLUNTÁRIO - a poesia brasileira no início do século 21.
Org. de Claudio Daniel. São Paulo: Lumme Editor, 2010. 328 p. ISBN 978-85-624-44-129-4
KANÇER (UM SOLILÓQUIO)
I
Quando me convenci
de que eu era imortal
veio o Doutor e disse:
- É câncer...
Aquela coisa tagarela,
pulsante e, em certo
aspecto,
imunda
era um câncer.
Faminto roedor que,
forjado por células
mortas, tragou
a fumaça que eu pensava
expelir ao mundo
e cresceu viçoso e
Traiçoeiro.
Uma femme fatale
beijando-me lixo
amando-me sobras
trepando-me restos
II
Aquele ser
de vontade própria
fazia com prazer
a fotossíntese em
meus brônquios
como se o pulmão
tornado, agora,
vaso de um bonsai das Bestas,
fosse o pasto, a laringe
uma latrina,
a descarga, o coração
III
Às vezes cheguei a sentir
subirem a sopa e o suco cadavérico
à boca em arrotos
de azia.
Desciam de volta, ardidas no peito,
gota após gota como se, do câncer,
fossem lágrimas de alegria
pela fartura indigna:
Ainda que não o merecesse,
esse câncer me tinha.
IV
Este obscuro mascote
carrega em si muito
mais de mim
do que eu mesmo posso.
Este tufo de morte me
regala como
o pão por Cristo aos seus
discípulos.
Se assemelha a um alarme
e soa sempre tresloucado
quando sinto certo riso
despertar em minha arcada.
É o riso de quem se esquece
por um átimo, o ataque
virulento de tal
pólipo depravado.
Mas é Claro que o diabo
agarrado em meu pulmão
grita logo e muito alto
recordando que, de assalto,
Esse pulmão não é
mais meu.
V
Portanto
o alívio de um sorriso
é o mau hálito
de um morto falante.
E assim sou a casa
de uma peste
morada da morte
hospício dos vermes
refúgio de um beijo
adúltero.
Mas,
VI
Amigo,
imundo amigo,
a você proponho
um pacto de obediência
mútua:
Te alimento mais e mais
com a fumaça suja
com o tabaco sábio
e você
rói
mais doce, moderado
mais lento
minhas carnes de dentro
e me ajuda a enganar a
morte, a trapacear
os urubus.
VII
Prolongue minha vida
insípida
que eu prolongo seu
banquete último
provoque pouco estrago
a curto prazo
que, a longo,
comerá mais dê mim
entregue à sua gana torta
em bandeja necrotéria.
Rói
mais lento
minhas carnes de dentro
VIII
Eu serei seu alimento
e você, o meu motor
serei seu combustível
e você, meu velocímetro
serei seu servo
e você, meu amante
autoritário.
Algoz atento,
rói
mais lento
minhas carnes de dentro
IX
Riremos juntos
do tempo.
A você juro fidelidade:
Nem químio, nem rádio
terapia alguma,
nem Hidreia.
Sei que esse o executasse
se tentasse extrair de mim (que
de pouco eu mesmo tenho)
sua raiz primeira plantada
em meu adubado pulmão,
você voltaria, mais forte
mais sedento, mais insano
e insensível,
para cobrar a quebra de acordo.
Então juro fidelidade
como jamais fui fiel a algo
ou a alguém.
x
Siga:
Roendo
mais lento
minhas carnes de dentro
Já não me toco.
Não me sinto.
Estátua de pedra permeável
por cuspes e risos de hienas
obsessivas, sou.
Passe um ano ou passem
cem, amigo, imundo amigo meu,
rói
mais lento
as carnes sujas de dentro
Que as de fora, vou à forra,
E rôo eu.
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Donny Correia - Estudante de Letras na Unibero. Poeta e tradutor, viveu em Londres no início do século trabalhando no jornal Brazilian News, é produtor cultural da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura.
Os poemas a seguir foram extraídos da obra ANTOLOGIA VACAMARELA : português, español, english. São Paulo: Edição dos autores, 2007. ISBN 978-85-905633-2-7, lançada em novembro de 2007 durante o Tordesilhas – Festival Iberoamericano de Poesia Contemporânea, realizado pelo Centro Cultural Caixa.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
VERNISSAGE
corpo,
cela
hermafrodita
jade negra
hemácias coaguladas
em veias lombrigas
delgada sonata
sem tom
sem
som
cegueira marrom
tato empalado
gesso de seda
camadas de giz
pernas
decepadas
joelhos
exibem
cenas floridas
(repousadas:
vaso de musgos
água negra)
esquecidas
CREPÚSCULO
E com a seda da navalha risonha
Alice acaricia o pulso
A vida lhe escapa de um soluço
E o sangue ralo beija a fronha
CORREIA, Donny. Corpocárcere. São Paulo, SP: Editora Patuá, 2013. 14x18 cm. 124 p+ 32 p. Tiragem: 100 exs. Capa: Angela Kina. Editores: Alice Rocha e Eduardo Lacerda. Ao final um “Apêndice crítica” com textos de Cláudio Daniel, Efraín Rodriguez Santana, Flávio Ricardo Vassoler. “Orelha” do livro por Maarcelo Tápia. ISBN 978-85-64308-64-0 “Donny Correia” Ex. na bibl. Antonio Miranda
DESENVOLVERMES
If I don´t go crazy
I´ll lose my mind
Scorpio Rising,
Death in Vegas
Implodir
essa balbúrdia,
devolver
vermes
de assombro e
ira
nas fezes inumanas:
/devolvermes/
Masturbar-
se
ao som de
chopin
ejacular flores
cobertas
regadas com chuva
dev
ácida
implodir
do pulso
ao pasmo
diafragma
(não sei mais
se fumo o cigarro
ou se o
fumo sou eu
ex tragado
a cada grito
de pedra
e silício)
/não sei/ se
me irritam
ou se
a raiva
sou eu
habitado por
inconveniente
humanoide de
gema, gesso
e germes
Implodir
tudo
do ouro
ao adubo
da estirpe
ao esterco
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Traducción:
Fábio Aristimunho
VERNISSAGE
cuerpo,
celda
hermafrodita
jade negra
hematíes coagulados
en venas lombrices
delgada sonata
sin ton
sin
son
ceguera marrón
tacto empalado
yeso de seda
capa de tiza
piernas
recortadas
rodillas
exhiben
escenas floridas
(reposadas
jarro de musgos
agua negra)
olvidadas
Página publicada em novembro de 2007
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